Alvoroço

Gustavo Wolf
levantelab
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5 min readJul 19, 2020
Ilustração de Diego França — Levante Lab

Fora recolhida, na calçada, por uma caminhonete; olhou-se de relance, não nos olhos da casa. Trouxeram-na e, antes mesmo de lavá-la, já a experimentavam de todo jeito. A mais velha das moças meteu o nariz nela e farejou suas intimidades — aquilo cheirava a cachorro de rua, mijo, não interessa, vamos ficar com ela. Ninguém se dispôs a averiguar-lhe o passado, ignorando as marcas, os medos e a energia que ela carregava. Sua morada sempre foi a sala, onde foi querida por um bom tempo, não obstante o pisoteio e as pitadas de cinzas, banalizadas pela recorrência, era uma vagabunda; afinal, fora achada na rua, bem macia e bonitinha; porém, ali, conquistaria o seu canto. Suportou o abuso das festas universitárias, os cigarros, isqueiros, chaves e moedas que acusavam furto, as drogas que mocozavam no vão de seus panos, as brincadeiras estúpidas e misóginas, as cervejas derramadas, a poeira a que era relegada nos dias seguintes. Tentou manter-se firme, mas o tempo não passou como ela esperava; sentiu uma coisa ruim, e pôs-se pra fora, pouco antes de os vizinhos conseguirem expulsar aqueles jovens putos e drogados do bairro. Uma carona, que foi obrigada a aceitar, trouxe-a até o centro, onde deu conforto e trato aos mendigos; foi abrigo e companhia de um cachorro e um porteiro ao longo de algumas semanas, quando se mudou para a praça, exposta a todos os transeuntes, a quaisquer amassos, ao desbotar do sol e à purificação, ao assédio dos pombos. Um cidadão de bem que, passando, cumprimenta a catedral, desce a rua numa tarde gostosa e avista-a dando mole, encostada numa árvore. Resolve dar-lhe um tapa, arrasta-a ligeiro para o carro, dirige tranquilamente, satisfeito, até a garagem, para, num ímpeto, terminar de rasgar seus trapos até despi-la inteirinha, apalpar seu corpo, suas formas e trabalhar nela até matar as costas. No outro dia, pela tarde, foi levá-la aos clientes, já vestida com uma nova estampa, sentindo-se limpa e atraente, enfim tratada com zelo e carinho. Quis retribuir, portanto, ajudar aquele bom homem de mãos hábeis e delicadas, trazer algum dinheiro pra casa; contudo, o primeiro mirou-lhe o semblante e percebeu que ela não saciaria seu gosto, seu paladar ― é bonitinha até, mas já deve ter mais de quinze anos; outro, também a seu modo sensível, provou-a e sentiu um desconforto. É o encosto, disse; depois, um velho a quis, feliz da vida, deu o que restava da aposentadoria, dente de ouro, mas tudo durou apenas três dias; o velho não fazia outra coisa e não saía mais dela, a não ser pra tomar o remédio — seu filho foi obrigado a devolver. O rapaz não sabia do dente, já na penhora, e ainda teve sonegada uma parte da grana no estorno. Ela ficou contente, era útil. Após uma ou outra venda frustrada, uma mãe de família teve um impulso de adquiri-la; o dono desconfiou da madame, mas a grana era viva, e ela foi entregue noutro canto, um pouco admirada com a pompa do apartamento, da amplíssima sala de estar, em que se sentia pequena, estranha, esquecida, salvo as manhãs que passava ouvindo as queixas da senhora pelo celular, passando por sordidezas e detalhes inescrupulosos de sua higiene e da relação com o marido, que quase nunca a usava, nem depois de chegar cansado de um dia agitado na empresa — preferia relaxar, tomando o sofá e o uísque frente à telona. Numa tarde de pilates e trabalho em grupo com uma menina em casa, o filhinho único e alguns colegas em cima dela perderam a virgindade. Com nojo, e ninguém sabe como, desceu os dezoito andares até a beira da calçada, onde aguardou, passando despercebida pelo pai, que saía com o carro rumo aos negócios. Mas o menino logo iria pra escola e poderia reavê-la; então tudo voltaria: o tédio, o estupro, o vazio da riqueza — em torno dela vibrava uma angústia que impelia o caos a um ordenamento –, alguém decidiria virar naquela rua e pegá-la. O moço loiro subiu o morro com o banco dobrado e ela no porta-malas, fez o seu movimento e depois penetrou-lhe um saquinho contendo umas tantas gramas, dando-a de brinde ao comprador, gordinho careca de outra cidade, uma embalagem descartável, que ele reciclaria, é claro, cobrindo-a com belas peles de animais, dando-lhe uma posição relevante no contexto da casa, passando noites instalado em seu colo, muitas delas sujando o cavanhaque de branco ao deslizar voluptuosamente o nariz pelas linhas que espalhava sobre ela, e amou-a tão intensamente que precipitou-se a retirá-la do convívio social e carregá-la pro quarto, em que permitia-se fazer estripulias, performances, gestos e vozes pretensamente dramáticas, enquanto ela servia de interlocutora calada, ao mesmo tempo que acomodava um público vidrado e fictício. Ela embaixo dele, ele em cima dela com uma moça adúltera, acrobacias em espaço reduzido, e as paixões eram malignas de tão sinceras, despertando um ódio investido em facadas e corpos mortos a ponto de gozar. Foi encontrada na esquina, manchada de sangue, o couro retalhado, espumando. Largada com desprezo e algum medo num terreno baldio do quarteirão próximo, carcomida, definhando as últimas fibras, e ninguém se aproximava, não se permitia o toque como antes, já por demais rodada e gasta, reputada pelas desgraças, antro de doenças amavelmente transmissíveis. O terreno tornou-se invendível, dera ao espaço uma aura de cemitério que desviava olhares e rotas de caminhada, sua carcaça era objeto de celulares, rezas, de exorcismos não presenciais, sua existência, testemunha do flagelo humano, finalmente desfalecida e pertencente à terra e às raízes dos matagais.

Sobre o autor

Gustavo Wolf, vulgo Guto, se meteu a escrevinhar depois de ser seduzido pelas ciências sociais. Embora não sinta mais tanto tesão pela sua dureza, pela sua forma, não quer e nem pode ignorá-las ao construir suas narrativas. No começo escrevia em terceira, mas, com o passar dos textos, foi sentindo que nesta pessoa não cabiam as diversas vozes que pretendia representar. Os contos passaram a ser publicados em fanzines, ficando um pouco mais enxutos com a vivência nos semáforos, no mangueio de contribuições. As ficções que hoje estão em blogs, logo menos se aglomeram num livro, contudo mantendo precavidamente uma página e meia de distância entre si.

Revisão: Claudio Borrelli

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Gustavo Wolf
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“No começo escrevia em terceira, mas, com o passar dos textos, foi sentindo que nesta pessoa não cabiam as diversas vozes que pretendia representar”