Traços Carregados

Gustavo Wolf
levantelab
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8 min readJun 14, 2020
Ilustração de Diego França — Levante Lab

“É tão bonito quando a gente pisa firme
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos
É tão bonito quando a gente vai à vida
Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração”
— Gonzaguinha

Era sempre uma tortura sentar-se quieto para amarrá-los. Sentia a vocação convertida num dever, pesando sobre dedos esquizofrenicamente rígidos, que trucidavam lápis e sacrificavam papéis. O traço carregado afundava letras nas mais sensíveis páginas — em cada folha, um novo texto convivia com marcas de versos anteriores. Nas frias madrugadas de séculos longínquos, vinham-lhe poemas sublimes que esquecia, anônimos, na gaveta da escrivaninha. Não se pode negar que sua companheira o incentivava, via nele um escritor; mas, além dessa riqueza intelectual, sensível, não era menos louvável a rentabilidade de seus exercícios diários na madeira, da arte talhada nas árvores que arrebatava. Morreu marceneiro, não poeta.

No dia em que terminaria tomada por um mal-estar denso, pesado, dona Elvira levantou cedo e foi visitar o falecido. Lembrou-se de regar suas plantinhas, de fechar todas as janelas, deixar o feijão de molho; preocupou-se em espirrar um perfume, passar uma escova rapidinho, um toque de batom, selecionar o colar, os anéis; fez ainda algumas revisões dos preparos pra deixar tudo certinho antes de sair; tomou as chaves, os óculos, alguns trocados para as flores, a condução — e esqueceu-se do remédio.

O porteiro do cemitério não despertou, mesmo com o seu insistente “bom dia”, do qual ela, supersticiosa, não gostava de ficar sem resposta. Os passos curtos, lentos, costumavam acelerar quando avistava a sepultura; ajeitou o vestido, passou a mão no cabelo e tropeçou numa garrafa, que bateu no chão e quebrou, espalhando o vinho pela encruzilhada — piscou-lhe na mente a imagem de seu amor precocemente baleado na esquina, saindo da venda: despejados corpo, sangue e pães frescos. Soltou um grito que acordou um sujeito que ela não havia notado, esmorecido numa cadeira de rodas, a poucos túmulos dali. Naturalmente, levou outro susto com aquele careca obeso, a cara amassada e o corpo cheio de rabiscos.

Hugo estava mais transtornado que a velhinha, não sabia por que despertara ali. Não podia conceber aquele lapso, logo ele, dotado de sóbria memória e que nada anotava: músicas, figuras, locais, nomes e falas ficavam indiscriminadamente registrados. Fazia seu trabalho sempre numa única sessão, tirando os traços de sua cabeça, sem qualquer desenho em que se apoiar. Lembrou-se de um horário marcado, acendeu um cigarro e impulsionou as rodas, dando as costas para dona Elvira, que ainda tentava chegar até o marido, enquanto o porteiro, sonolento, ponderava: que fosse comprar outro vinho.

Desafiou uma ladeira que o deixou vermelho. Finalmente, chegou a uma esquina plana, mal respirou e foi atacado por diversos panfleteiros; não tendo para onde fugir, nenhuma descida à vista, depositou o que recebeu na bela gavetinha de madeira que improvisou debaixo do assento. Lisa e estreita, ou ampla e quebrada, não importa, sempre preferiu as ruas às calçadas. Gostava de velocidade. Achava que já não tinha tanto a perder e era imprudente nos declives — não desperdiçava um embalo. Chegava a gostar daquelas rodas compondo o seu corpo e, às vezes, dormia satisfeito. Veio deslizando rumo ao estúdio, penetrando a área que considerava seu distrito, até parar na padaria, como sempre fazia, religiosamente. O comércio transcendia em muito o pão francês; vendia de tudo: fatiado, enlatado, a granel, inutilidades de plástico, até goró, pratos feitos e cigarro avulso. Não importava a inexistência de rampas, não entrava, tomava seu café nas mesinhas do lado de fora; embora um pouco distante, estava a um dedo da atenção das garçonetes, que ali sempre encontravam um humor convidativo, boas gorjetas e boas maneiras.

A panificadora era o seu centro. Quando não aparecia, os funcionários e clientes assíduos davam falta: sentenciava-se um dia fraco, morno, incomum. Do dono, Murilo, era parceiro da antiga; tatuou o nome da mãe nele, o rosto dele na mãe; ali a prosa não secava: tinha o sarcasmo das crônicas do dia, abobrinhas, o futebol, além de adversidades e perturbações a serem minimizadas. Naquele dia o amigo apareceu abatido, enrolou um pouco em silêncio, fez um misteriozinho e se desembestou a reclamar da má sorte nos negócios. O cadeirante se precipitou a prometer o acerto daquela que tava pendurada, no que Murilo recusou, “não é isso, cara”. Já somavam doze assaltos à padoca, dois deles em cima de uma senhora com um desenho bem realista num braço: “acelera, ô velha punk, dá meu dinheiro”; outro com o sobrinho dando uma ajuda no caixa, e o próprio Murilo, na maioria das vezes — nunca com o Hugo lá.

Apoiado nas finas pernas, que apenas subsistiam, metidas eternamente numa cadeira, fumava no ritmo do insaciável — a vida sendo consumida em minúsculos incêndios de círculos de pólvora –, sentia que não fumava sozinho. Deixou-se transbordar a hora e mais uma vez o cara do piercing teve que ir chamá-lo — não havia revistas nem televisão, tampouco wi-fi para entreter a espera. Reconhecido pela qualidade dos trampos e por torturar delicadamente as pessoas, Hugo tirou sangue de outra vítima de sua arte, passou um paninho, e, nos olhos do cliente, que era obrigado a suportar contorcido em posições ruins, brilharam a certeza de que valera o sacrifício. Logo retornou à sua mesinha de canto, também um tanto moído, as costas travadas, trapézio e ombros fatigados; pediu sua gelada, aquela dose e um salgado, seu kit; abriu a gavetinha e procurou o isqueiro entre os papéis.

Dali alguns dias, estava fazendo seu trajeto cotidiano quando, no contorno da esquina, se deparou com a ausência das cadeiras e mesas externas; nos cantos, punhados de sal grosso; além disso, um velho chupado, projeto de segurança, na entrada, encarando-o com sono. Os dois degraus eram um muro, gritou Murilo — as sobrancelhas oblíquas e os braços abertos exigindo explicação.

Após o décimo terceiro assalto, o jovem empreendedor ficou afetado, passou a desconfiar de todos, inclusive do velho amigo, que, estranho à sua regularidade, jamais havia presenciado um. Fez mudanças, instalou câmeras, alarme, e esperava a vinda de uma esotérica que, por e-mail, já lhe havia lhe passado alguns procedimentos. Não satisfeito com as explicações, Hugo foi embora, puto. Quinze minutos depois, chega a mulher, de calça jeans e cabelo liso, contrariando as projeções das balconistas. Acendeu uns incensos, uma reza aqui, outra ali, mais sal para as lacunas deixadas, e só. Todos ficaram um tanto decepcionados, não teve show. Antes de sair, pegou um pote escuro qualquer dos armários, pronunciou uns dizeres sagrados e pagãos e o lacrou com fita isolante, firmando-a com um isqueirinho bic rosa. Subiu no balcão e o pôs lá em cima, inacessível. Murilo atreveu-se a perguntar o que era, não respondeu; se já podia colocar as mesas lá fora de novo, a mandingueira deu de ombros.

Voltou depois de uma semana. Hugo também. Desta vez, ela chegou antes. De uniformes brancos, todos deixaram seus postos para apreciar o espetáculo — agora alguma coisa tem que acontecer. A mãe, talvez a mulher mais próxima dele, ficou de vir acompanhá-lo, mas não estava ali quando um bafo de álcool empesteou a padaria; o estilete, nas mãos finas e secas da feiticeira, cortava a fita, e o pote era aberto, dando um gelo na barriga de Murilo e uma palidez de morte ao ver o dinheiro picado, emaranhado em fios de cabelo que lhe eram familiares. Seriamente impressionado, resolveu compartilhar com o cadeirante, mas, ao passar pela porta, percebeu que o conteúdo desaparecera do recipiente — ofereceu uma cerveja, para não perder a viagem. Que é que tem nesse pote aí? Aqui ?, não, nada. Entregou o dinheiro à cigana, que, sem se despedir, saía, conferindo-o; passou por Hugo e teve um sobressalto — e aí, tirou a macumba do bagulho?

As peles vão enrugar e secar, desenhe com as palavras e seu texto será tatuado na vivência daqueles que estão destinados a te encontrar, disse-lhe a mulher com um olhar cabalístico. O quê? Você já ouviu, não vai esquecer. Agora, me diga, por que cê não comprou outro vinho pra ajudar a velha?

Permaneceu fazendo fumaça e pondo os líquidos pra dentro e pra fora até Murilo encerrar o expediente, beirando a meia-noite. Caminho de casa, precisava de uma massagem para apaziguar os músculos próximos ao pescoço, os ossos ansiosos e a sonora crocância das cartilagens, e fez um ziguezague pelas vielas, procurando alguém de serviço. Passa em frente ao cemitério e escuta uma coruja chamar por seu nome. Para, mira a profundeza, a alameda principal, as flores, sepulturas, todo aquele cimento, os anjos e a dona Elvira. Duvidou do susto e aproximou-se da portaria: a televisãozinha chiando um filme dublado, a cafeteira, um casaco, ninguém. Roda um pouco pelas covas, já sem saber o que procurava, até deparar-se com uma poça vermelha. Retira do bolso da camisa o isqueiro e o maço. Teme enxergar demais com a pequena chama e finge não se preocupar com as mãos trêmulas a acender o tabaco. Tem um cigarro? Ao lado dele, surge, barroco, o porteiro, uma expressão calma e sem vida, apoiado no concreto. Hugo cede-lhe um cigarro. Ele traga lentamente, olha para o chão alagado e solta a fumaça: um trabalho desses interrompido…

Hugo, sem entender, sente que deve um favor. Dá giro nas rodas, afastando-se rapidamente à procura de um posto vinte e quatro horas. De volta, o homem agradece, faz um sinal cumprimentando o invisível e gestos de reverência para o nada. Deposita o vinho suave ordinário onde antes perdurava uma mancha, de pronto seca. Olhos fechados, encara essa criatura que não toma jeito nem sentada; pede uma limpeza no apê, onde a serenidade não penetra e as alegrias logo se dissipam: você é muito antigo pra ser tão inquieto, ensine um pouco do que sabe, nos dê a vida por outras imagens e sossegue.

Passadas semanas, aquela já não era uma memória consciente, e ele deixou-se enveredar por ficções, perder-se em ideias sedutoras, até bater o impulso de tomar uma caneta promocional junto a um folder de crédito para negativados, abandonados na gavetinha, e dar forma a uma prosa violenta. Na manhã seguinte, desmarca uma salamandra nas costas de alguém. Sentia a dor nas costas esvaindo-se. Vira noites e atravessa as manhãs depositando nos versos de quaisquer folhas velhas uma energia acumulada que acariciaria angústias e prenderia leitores.

Agora era ele quem disputava com os coletes, bonés de logomarcas, malabarismos, panos de prato, sucos, balas, cocadas e caixas de morango um minuto de sua atenção para a publicação alternativa. Após semear aquele farol de textos mágicos por quase vinte anos, alguém, ou a pessoa certa e tão esperada, reúne e edita as narrativas marginais, enfim legitimando um autor que já gozava de certo reconhecimento enquanto personagem das ruas.

Murilo segue fabricando pães, servindo almoços e geladíssimas ampolas de 600 ml; contudo, a última mesinha do lado de fora dera um quê de literatura para o seu negócio, falantes grupos de gente esquisita e um ar cult que ele estranhava. A cada autógrafo, Hugo despercebia a pressão da existência. Em alguns meses, receberia um prêmio pela obra, uma revelação, o clássico daquele ano; quitaria, orgulhoso, suas dívidas e seria pego por um ônibus num cruzamento. Nascerá alguém mais leve da próxima vez.

Sobre o autor

Gustavo Wolf, vulgo Guto, se meteu a escrevinhar depois de ser seduzido pelas ciências sociais. Embora não sinta mais tanto tesão pela sua dureza, pela sua forma, não quer e nem pode ignorá-las ao construir suas narrativas. No começo escrevia em terceira, mas, com o passar dos textos, foi sentindo que nesta pessoa não cabiam as diversas vozes que pretendia representar. Os contos passaram a ser publicados em fanzines, ficando um pouco mais enxutos com a vivência nos semáforos, no mangueio de contribuições. As ficções que hoje estão em blogs, logo menos se aglomeram num livro, contudo mantendo precavidamente uma página e meia de distância entre si.

Revisão: Claudio Borrelli

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Gustavo Wolf
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“No começo escrevia em terceira, mas, com o passar dos textos, foi sentindo que nesta pessoa não cabiam as diversas vozes que pretendia representar”