Justiça Estatal e Justiça Privada

Liberais Antilibertários
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8 min readMay 1, 2020

Aproveitando casos que a justiça estatal é ineficiente como o caso do ministro que ia soltar um monte de bandidos e o caso do piloto que claramente agrediu a mulher em vídeo mas não foi preso por falta de provas (WFT?) ancaps costumam pregar que a justiça privada seria mais eficiente e que casos como esses não aconteceriam se fosse justiça privada no ancapistão . Mas obviamente tal afirmação está completamente errada e mais uma vez só revela a visão limitada de mundo dos caras . Casos até muito piores que esse não só poderiam ocorrer como provavelmente ocorreriam .

O serviço de justiça vai muito além de só alguém montar um tribunal privado e receber dinheiro para mediar conflitos . A questão é que a lei deve ser uma só em um território, não se pode abrir brecha para cada um fazer sua lei senão os conflitos não serão resolvidos. Entenda como lei não só uma ideia geral do que seria certo ou errado como é a lei de propriedade privada mas sim um arcabouço teórico que garante como ela será aplicada. Quando ancaps respondem com exemplos de justiça descentralizada , os anarcocapitalistas confundem execução da lei com a justiça em si . Em sociedades como a Islândia medieval que eles tanto adoram citar tinha apenas uma organização mais descentralizada , mas visivelmente não era justiça privada e muito menos ancap.

A começar por ser dividido em um primeiro nível esse sim um juizado (não justiça) privado que não fazia as próprias leis , apenas fazia acontecer as leis vigentes em toda Islândia e era um nível bem regional . Leis essas que eram feitas com participação de toda população , e depois impostas a todos mesmo quem não concordou com elas . No segundo nível tínhamos os juízes nomeados pelos goðar (líderes) de uma das quatro repartições da Islândia e por fim um tribunal nacional , as lögrréttas , cujo líder era eleito a cada três anos pela população . Sempre que uma disputa não era resolvida em um âmbito menor ela poderia ir para o maior . Apesar deles não serem executivas , eram eles que faziam as leis mediante participação da população e eram devidamente gravadas mentalmente na época das Sagas (pelos lögsögumað ) e depois de forma escrita nas grágás. Cabia a eles também autorizar que alguma parte atacada revidasse cobrando multas ou até matando o agressor dependendo do crime cometido de acordo com as leis feitas por eles .

O curioso é que nos primórdios na ocupação da Islândia Medieval , entre 870 e 930 , quando os primeiros colonos chegaram da Islândia fugindo da perseguição do Rei da Noruega , a justiça era bem simples feita apenas por assembleias locais , as chamadas things. Essas no inicio eram bem informais e regionais , depois se tornaram mais formais com até reuniões periódicas . Por volta de 930 surgiram as Althings que era como as things mas já valiam para todo território islandês e em 965 a Islândia foi dividida em quatro partes onde o chefe de cada parte podia criar suas leis para ela mas havia o poder geral .

Ou seja se seguimos a premissa ancap que o ser humano faz ações para sair da zona de menor conforto para maior conforto ( que na verdade nem é ancap já que é parte da praxeologia do Mises que nem é ancap , mas eles a seguem ) é perceptível que é mais cômodo para os seres humanos ter um poder que vale para zonas maiores do que um que vale apenas para a pequena localidade dela . Se não fosse assim as things teriam se mantido naturalmente.

As leis não eram as básicas baseadas apenas em propriedade , na verdade haviam leis contra ofensa verbal em que pessoas ofendidas poderiam requerer duelos , obrigação dos agricultores se filiarem a um fazendeiro que era líder de uma das quatro divisões , e até impostos para garantir amparo a órfãos e para bancar um sistema de seguro contra incêndios e doenças , através das Hreppar . Detalhe : Isso tudo era coercitivo , as pessoas não escolhiam participar . Ou seja em nada se parece com o modelo proposto pelos anarcocapitalistas de justiça privada e tampouco é um exemplo de anarcocapitalismo.

Na verdade vamos pensar como seria um modelo de justiça realmente privado dos anarcocapitalistas :

Poderia ser simplesmente um monte de tribunais com cada um fazendo suas leis , podendo fazer QUALQUER lei na verdade . Apesar que na prática seria isso que ocorreria em um anarcocapitalismo , essa insanidade não é defendida por eles. No modelo que eles propõe todos teriam em mente que ninguém poderia criar leis que ferissem a propriedade privada como lei absoluta . Assim nenhum tribunal poderia condenar ninguém por racismo ou agiotagem por exemplo porque estaria no subconsciente das pessoas que apesar de imoral isso não fere a propriedade de ninguém. No entanto como não existe uma base legal para todos se basearem na hora de aplicar a lei, tecnicamente a forma como o tribunal vai punir as pessoas que ferirem a propriedade alheia fica a cargo do tribunal privado. Exemplos :

É evidente que roubo e bater com uma marreta em um carro de outra pessoa é uma agressão a propriedade , assim nenhum tribunal poderia criar uma lei dizendo que o ladrão ou o cara que bateu com a marreta no carro não devem ser punidos . Mas , como punir ? Um tribunal , de nome Kogos & Porto suponhamos, pode entender que no caso do ladrão ele perde completamente qualquer direito e pode ser agredido de várias formas que quem teve o objeto roubado achar melhor inclusive a morte . Se ele quiser tatuar a testa do ladrão ele pode . No entanto um tribunal , de nome Hide , entende que caso isso seja feito será desproporcionalidade e que o correto talvez seja apenas só ladrão repor o que ele roubou .

Então caso alguém puna o ladrão com muita violência sendo amparado por um tribunal Kogos & Porto , esse ladrão poderia recorrer a outro tribunal , o Hide nesse caso , por atitude desproporcional da vítima . Sabendo que não há uma lei por escrito clara e objetiva e nem a possibilidade de um se impor sobre o outro a tendência é o conflito. E não pense que isso se limita a teoria . Tal discordância é baseada em uma discordância real entre ancaps sobre como um ladrão deveria ser punido . Todos baseando em propriedade privada como lei absoluta . Mesmo um terceiro tribunal não poderia se impor sobre ambos . Qualquer tentativa de imposição a força por uma maioria achar certo , é de se esperar um conflito mais severo . Pra piorar nesses casos em que de fato houve uma agressão a tendência é que ambos queiram impor uma punição o mais rápido possível , o que faria eles provavelmente partirem para uma imposição de pena baseado no que ele acha certo .

Esse tipo de conflito poderia acontecer a todo momento pelos mais diversos motivos . No caso do cara que bateu a marreta no carro do outro , pode se haver discordância entre um fórum que quer que o agressor reponha o que ele estragou e um que quer que ele reponha e pague mais uma indenização. Repare que não há nada que possa ser deduzido através da ética libertária aqui , é tudo questão de contrato. Pegue temas mais sérios como aborto , disputas por herança e cercamento que além de atualmente não serem consenso entre os libertários é visível que baseado em propriedade qualquer um dos dois poderiam estar certos , são temas bem mais sérios e veja os conflitos se intensificarem .

Então resumindo esse ponto , é preciso uma instituição que garanta que as leis a serem seguidas em um território serão as mesmas e não cada um fará sua lei . E estas leis obviamente devem ser coercitivas . A justiça realmente privada provavelmente geraria uma série de problemas . Se temos as leis a mercê da demanda do mercado , então há de se esperar que as pessoas recorram ao tribunal que melhor atende suas demandas . Ou talvez devemos esperar que as empresas de justiça para não perder clientes atuem como advogados deles , interpretem a lei de acordo com a conveniência do seu cliente .

As empresas simplesmente poderiam se especializar em defender criminosos e ficarem boas nisso , no mínimo sabendo como minimizar as penas e em vários casos usar de tal estratégia argumentativa que faça parecer que o agressor é o agredido . Assim elas teriam clientes garantidos pois sempre terá conflitos em sociedade pelos mais diversos assuntos , e claro sempre terá gente querendo fazer algo de errado e precisando de alguém que lhe ajude a se safar . Lei de oferta e demanda , se tem demanda de pessoas que agem errado haverá tribunais para defende-los . Assim é difícil acreditar em uma cooperação mútua entre todos os tribunais para a manutenção de uma unidade de leis e evitar conflitos .
Até em casos de justiça descentralizada que visa criar melhores regras e resolução de conflitos ao nível local como a Islândia Medieval , havia um tribunal com autoridade sobre todos os outros , coercitivo e soberano para resolver os casos mais graves ou quando a imparcialidade dos tribunais estivesse em dúvida . No anarcocapitalismo isso simplesmente não existiria ! Cada tribunal pode impor as leis que quiserem desde que pelo menos finjam seguir a lei de propriedade privada absoluta . E pior , ninguém é obrigado a seguir as ordens de um tribunal que ele não paga pois ele já está de acordo com o tribunal dele . Assim uma pessoa que tatuou a testa de um ladrão e for condenada pelo tribunal Hide pode simplesmente ignorar a sentença e na hora que o tribunal Hide de alguma forma obriga-la a pagar por força a pessoa entenderá que o tribunal é o agressor e reagirá na mesma proporção . Cada um entendendo que está certo do seu ponto de vista e obviamente gerará muito conflito . Até físico na verdade .

Não importa quanto malabarismo mental os ancaps tentem fazer : Boicote social e contratos voluntários já foram refutados . O primeiro pela impossibilidade de boicotar além de desconsiderar que os temas que levam as pessoas a boicotar podem estar entrelaçados o que o torna pouco eficiente . O segundo pela sua execução ser pouco eficiente . Condomínios privados deixam claro que a lei deverá ser feita e mantida por uma autoridade superior a todos e terá de ser coercitiva . Isso até mesmo para assuntos aparentemente simples . A essa autoridade podemos entender como estado .

Claro que os ancaps podem mudar a semântica , dizer que estado é só os estados atuais , um condomínio privado não é um estado , você terá de pagar a taxa de condomínio , seguir as regras coercitivas dele ou cai fora , regra essa que provavelmente serão discutidas em assembleias de moradores , mas não é um estado imagina . O argumento da voluntariedade do condomínio em um ambiente em que os próprios ancaps dizem que TUDO será privado e terá as próprias regras que as pessoas simplesmente terão de obedecer também não cola . Ou seja os condomínios privados são a solução mais estadista que um ancap pode dar , o fato de ser algo como um estado privado não muda o fato das suas semelhanças com o estado .

Além de claro deixar claro que a justiça não pode ser privada . Por fim , sim a justiça estatal tem suas falhas mas sem dúvidas é bem melhor que uma justiça privada.

Fontes :

Discordância entre anarcocapitalistas sobre punição :

https://www.youtube.com/watch?v=Qv4UAYzTCA0

https://www.youtube.com/watch?v=d6toP2CZ9Bk

Islândia Medieval :

http://www.hurstwic.org/hist…/articles/society/…/drengur.htm

https://helda.helsinki.fi/…/ahola_dissertation.pdf;sequence…

http://www.academia.edu/…/Assembl%C3%A9ias_e_Disputas_Legai…

http://www.academia.edu/…/Los_exiliados_interiores_la_espec…

https://www.nyudri.org/…/publicatio…/2012/discoveringlaw.pdf

Post refutando boicote social :

https://www.facebook.com/…/a.18489656487…/2089453808043032/…

~degenerado

Publicado originalmente em: https://www.facebook.com/liberaisantilibertarios/posts/2212014549120290

28 de dezembro de 2018.

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