A INQUISIÇÃO SOCIAL

L. Z.
Liberdade de Expressão em Debate
5 min readFeb 14, 2016

“Se você aceita — e eu aceito — que a liberdade de expressão é importante, então você vai ter que defender o indefensável. Isso significa que você irá defender o direito das pessoas de ler, escrever ou dizer o que você não falaria ou não gostaria que fosse dito.”

— Neil Gaiman

A Inquisição pareceu uma boa ideia na época em que foi criada. Tida como forma de evitar condenações por mão popular, eventualmente desembocaria em uma perseguição desenfreada a hereges, sodomitas e qualquer pessoa que fosse considerada culpada, independente da autenticidade da acusação.

Mas combater bruxas parecia ser um boa ideia na época. Afinal, elas eram responsáveis pelas terríveis condições climáticas, pela morte das colheitas, pelo aumento do crime, pela fome em massa e por quaisquer outras coisas ruins que acontecessem. Ou ao menos era nisso que as autoridades pareciam acreditar.

Enfim, as bruxas mereciam.

E é esse o tipo de coisa que acontece quando você desumaniza seu oponente e atribui a ele a culpa de todos os males do planeta. Você consegue arranjar justificativas para o que diabos quiser fazer com ele.

É claro que não se pode comparar os métodos e ideais da Igreja Católica e do Estado durante o período medieval com nenhum grupo contemporâneo, mas pode-se traçar um paralelo óbvio:

Tanto a Inquisição daquela época quanto a de hoje acreditavam estar fazendo Justiça.

Os Justiceiros da Inquisição Social se escondem por trás de causas legítimas. Eles são capazes de subverter conceitos que deveriam ser universais e se colocam como guardiões da moral ou combatentes da desigualdade e do preconceito. São capazes de arruinar reputações, censurar opiniões e destruir carreiras.

Tudo pelos motivos certos, é claro.

Quando vítimas e seus simpatizantes resolvem se rebelar contra os agressores, boas intenções geralmente não são o suficiente para garantir que não acabem se tornando algo quase tão ruim quanto aquilo que combatiam. Ou pior.

Foi assim com praticamente qualquer revolução na história humana. Por mais necessárias que sejam algumas mudanças, a forma como são feitas ou o resultado delas nunca é obrigatoriamente positivo.

Um Inquisidor Social geralmente não se importa com métodos ou motivos. Ele apenas escolhe um lado do espectro politico ou ideológico e demoniza o outro, colocando seus opositores como hereges e bruxas responsáveis por todos os grandes males, que merecem queimar em uma fogueira platônica, alimentada pela lenha do escárnio e da razão.

Acreditando que suas atitudes são justificadas por estar “do lado certo”, o Inquisidor é capaz de qualquer coisa dentro de suas capacidades e convicções.

Afinal, as pessoas ignorantes e facilmente manipuláveis que não compartilham de suas opiniões estão obviamente erradas, e o seleto grupo que o faz serve como incentivo para que continue acreditando naquilo.

Pense a respeito: Quantos links você divulgou apenas porque eles apresentavam alguma informação com a qual você já concordava, ou que serviam apenas para desacreditar “o outro lado”?

Talvez o fato de ter sido escrito por alguém passe alguma sensação de legitimidade, e talvez a pessoa que escreveu tenha sido capaz de expressar o que você pensava de uma maneira interessante, mas o que acontece quando nos fechamos apenas para as coisas que fortalecem nossas concepções, ao invés de contestá-las?

A melhor forma de melhorar a sociedade é mesmo se fechar em um “espaço seguro” onde aquilo que é ofensivo para nós não tem nem a chance de existir? Onde ignoramos nossos adversários ideológicos e aqueles que possuem opiniões controversas? Onde acreditamos em uma narrativa única, e aprovamos e promovemos apenas aquilo que se encaixe nela?

É como uma masturbação intelectual coletiva, onde todos em um determinado grupo se agradam e se sentem bem consigo mesmos, mas no fim não passam de um bando de punheteiros.

Afinal, se você quer foder com alguém, precisa ir mais longe do que isso.

É preciso conhecer os argumentos daqueles que você quer combater. É preciso ir atrás da verdade inteira. Aceitar que a manipulação da mídia não se limita apenas a uma emissora ou publicação, mas que está presente em diferentes níveis em diversos veículos de comunicação.

Não adianta apenas apontar as contradições no discurso ideológico de seu oponente com memes e frases feitas, você também precisa se blindar para as contradições no seu próprio discurso. Não encaixe seu opositor em um estereotipo imediato, e você ao menos terá superioridade moral caso ele faça isso com você.

Quando colocamos o que sentimos a respeito de algum grupo, pessoa ou ideia na frente da lógica, nossos pensamentos são filtrados por emoções, e colocamos uma carga — muitas vezes exagerada — por cima de conceitos que deveriam ser simples, substituindo verdades básicas sobre a existência humana com nossas próprias concepções, experiências e motivos.

Assim, a veracidade de uma informação acaba dando lugar ao que ela representa. Ao que sentimos com aquilo.

Se existe um link que contrarie o herege ideológico que ousa discordar de suas opiniões, é considerado dever do Inquisidor usá-lo como exemplo, independente de haver verdade ou não naquilo, ou no quão tendencioso seja.

Pior: quando contestado de que algo não passa de mentira ou boato, o Inquisidor simplesmente se defende com o argumento absurdo de que, mesmo que tenha errado, aquele é “bem o tipo de coisa que esse tipo de gente faria”, abdicando-se da culpa com uma lógica preconceituosa na qual colocamos os “hereges” dentro de uma linha comportamental da qual se pode esperar qualquer coisa.

Existe tanta legitimidade em um site como o Pragmatismo Político quanto em uma Revista Veja. A diferença é com qual você se identifica mais — e o porquê disso. Vestir a camisa de um veículo de comunicação não o torna mais inteligente, muito pelo contrário: ao acessar somente aquilo que concorda com o que você já acredita, você se priva de experiências que possam contestar seus ideais.

Não é necessário que você mude o que pensa, mas é mentalmente saudável colocar isso à prova e se confrontar com as melhores opiniões contrárias possíveis, pois assim você pode usar a razão — e não a emoção — para provar seu ponto. Ninguém nunca ficou mais burro por ler demais de fontes diferentes.

O que você prefere? Sentir-se bem consigo mesmo, sabendo que existem pessoas que compartilham de suas visões, ou contestar tudo aquilo que você acredita, em nome da verdade? Fazer parte de um grupo e sentir que está do lado “certo”, ou pensar por conta própria?

É claro que existem discursos indefensáveis. Ódio e preconceito disfarçados de opinião, crença ou ideologia. O mal existe, do contrário não teria de ser combatido.

Mas não é tapando nossos ouvidos, fechando nossos olhos e calando bocas alheias que vamos vencê-lo.

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