Devemos proibir ideologias e comportamentos discriminatórios?

O governo deve abster-se de legislar sobre a história, pois isso é uma clara violação à liberdade de expressão.

Leis que criminalizam “a negação de genocídios” apareceram na Europa na década de 1990.

Inicialmente, eram dirigidas apenas para o Holocausto, mas mais tarde espalharam-se para cobrir a negação dos “crimes do comunismo” e genocídios reconhecidos pelo Estado como o massacre de armênios sob o Império Otomano, ou a fome ucraniana de 1932–1933.

Uma decisão da UE de 2008 sugere que “apologia pública, negação ou banalização grosseira dos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra” deveriam ser punidos com prisão de um a três anos.

Nenhum país tem levado leis de memória de guerra e genocídio mais ao pé da letra do que a França, um país em que popularmente foi dito que legislar sobre o passado já virou uma espécie de “esporte nacional”.

Tudo começou com a lei Gayssot de 1990, que pune a negação do Holocausto com multas e prisão.

Uma década depois, a legislação veio grossa e rápida: uma lei de 2001 reconheceu o genocídio armênio, enquanto outra lei no mesmo ano definiu o comércio de escravos e a escravidão como crimes contra a humanidade.

A lei de 2005 reconheceu o papel positivo desempenhado pelo colonialismo francês, com uma crítica que proíbe, ou minimiza, os crimes contra os harkis (os argelinos leais à França).

Um projeto de lei futuro tentou punir a negação do genocídio armênio; embora não tenha conseguido passar, a questão ressurgiu em 2011, com uma lei em que aqueles que negassem ou minimizassem o genocídio receberiam uma multa de € 45.000 e um ano na cadeia.

Contudo, também é na França em que não se aceitam oposições de suas leis, nem por parte de historiadores.

O grupo Liberté pour l’Histoire formado em 2005, ao longo dos últimos sete anos, se opôs às leis de memória com um temperamento muitas vezes vanguardista. Eu conheci o chefe da organização, o historiador Pierre Nora, e o secretário do grupo Olivier Salvatori, nos escritórios de editores Gallimard em Paris onde trabalham.

Liberté pour l’Histoire sempre argumentou que tais leis violam a Constituição francesa e os princípios fundadores do Estado moderno. Em sua petição de 2008, Appel de Blois declarou:

“Em um estado livre, nenhuma autoridade política tem o direito de definir a verdade histórica e restringir a liberdade do historiador com a ameaça de sanções penais”.

Nora me disse que

“As leis de memória são completamente diferentes das leis sobre difamação, que protegem os direitos individuais e podem ser derivadas da constituição.”

Leis de memória existem não para proteger direitos, mas para estabelecer verdades históricas, sob pena de sanções penais.

As implicações para a investigação histórica são profundas.

“E se alguém escrevesse um livro dizendo que 10 milhões, em vez de 12 milhões de africanos, foram tomados pelo comércio de escravos? Ele seria culpado de um crime?”, pergunta Nora.

O estado “fixa um limite” para os historiadores, dizendo-lhes ‘o que eles devem pesquisar e o que eles devem encontrar’.

O grupo lançou uma petição em 2005 em resposta à repressão ao historiador Olivier Petre-Grenouilleau por “negação de um crime contra a humanidade”, depois que ele disse em uma entrevista que em sua opinião o comércio de escravos não era “um genocídio”, uma vez que “não tinha o objetivo de exterminar um povo”.

A última vez que os Estados europeus prescreveram verdades históricas sob a ameaça de sanção penal foi sob as leis de blasfêmia e heresia. Contudo, as leis de memória contemporâneas são bastante distintas destas antigas verdades ordenadas pelo Estado.

A característica marcante das leis de memória franceses é a falta de qualquer lógica dominante: uma lei é pró-colonialista, duas são de desculpas (embora para eventos de vários séculos de intervalo), e uma (a lei do genocídio armênio) lida com um evento que não envolveu a França e que muitos franceses sequer ouviram falar.

Não está claro por que um presidente francês teria alguma necessidade urgente de legislar sobre o massacre de armênios em 1915, de forma que consultaria esta lei através do convite da oposição — contra seus próprios assessores — e a aprovaria por um voto de diferença sem precedentes.

“Nós não entendemos muito bem porque eles fizeram isso”, disse Nora, “há muitas hipóteses”. Alguns sugerem que a ação poderia ser geopolítica, adiando a entrada da Turquia na União Europeia.

Um fator maior é eleitoral: armênios são um importante bloco de eleitores em áreas-chave, como Marselha e Lyon, e não é por acaso que as iniciativas da lei sobre a memória do genocídio armênio apareceram em anos eleitorais. A lei de 2011 foi adotada pelo vice de Marselha, que também foi vice-presidente do Grupo de Amizade Armênia-França.

A pré-condição para as leis de memória é a moralização da história — ou, mais especificamente, uma mudança de “vitoriosos da história”, em que nações exageram seus atos heroicos sobre o passado, para uma ideia de “vítimas da história”, onde grupos enfatizam seus sofrimentos passados.

A exigência de reconhecimento do sofrimento histórico é implicitamente uma afirmação feita por meio do Estado; em última análise é uma demanda de indenização por violações sofridas, seja na forma de dinheiro ou proteção ideológica.

Termos como “genocídio” e “crimes contra a humanidade” são agora, constantemente, parte da tomada de reivindicações políticas. “Esses termos foram uma vez muito precisos”, diz Nora.

“Um crime contra a humanidade era um termo jurídico aplicado após a Segunda Guerra Mundial, que envolveu o dever legal para perseguir e levar à justiça os autores do Holocausto até suas mortes. Genocídio significava a decisão de destruir uma parte de uma população por motivos racistas”.

Agora eventos que incluem guerras civis e o tráfico de escravos podem ser descritos nestes termos. Na visão de Nora, “é um absurdo judicial dizer que um evento como o tráfico de escravos era um crime contra a humanidade”.

Os autores desse crime estão a vários séculos longínquos, e sua intenção não era destruir uma população. Quanto mais a palavra “genocídio” é amplamente utilizada por razões ideológicas, mais ela se torna “uma palavra que os historiadores tentam evitar”.

Nora diz que os historiadores podem lidar com essas tendências culturais, desde que elas não estejam incorporadas em leis — e, consequentemente, desde que os historiadores sejam livres para desafiar ou ignorar esse usos do passado. São as leis de memória o problema e precisam ser descartadas.

Nisso, o grupo Liberté pour l’Histoire tem sido notavelmente bem-sucedido. Embora Salvatori tenha dito que o grupo “não é bem uma organização” — não há escritório ou equipe — eles fizeram ouvir suas vozes nos meios de comunicação e nos mais altos escalões do Estado.

“Nossas ideias ganharam a batalha da opinião púbica”, julga Salvatori.

Para todos os efeitos, o grupo conseguiu tornar as leis de memória da França nulas e sem cabimento.

Um inquérito parlamentar de 2008 — em que o grupo deu abertura e fechamento de testemunhos — emitiu a conclusão retumbante de que o governo deve abster-se de legislar sobre a história.

Mais importante, o grupo alcançou a suspensão da lei do genocídio armênio de 2011 pelo Conselho Constitucional, que viu em uma decisão histórica em 28 de Fevereiro de 2012 que a lei era inconstitucional em razão de violação à liberdade de expressão.

Por agora, então, a ameaça de leis de memória na França parece ter diminuído. Mas a lição dos últimos sete anos é que o impulso para legislar sobre eventos históricos reaparece uma e outra vez, muitas vezes sem aviso prévio e em formas surpreendentes.

Muito logo depois de ser eleito em 2012, François Hollande expressou seu desejo de voltar a legislar sobre a questão armênia.

Liberté Pour l’Histoire deve manter-se vigilante’, disse o ex-ministro da Justiça Robert Badinter à assembleia geral do grupo: poderia haver mais leis de memória. “Nós não vamos debandar”, diz Nora.

Esta rede informal de historiadores forneceu à Europa um estudo de caso impressionante de campanha liberdade de expressão. Com o slogan “liberdade para a história é liberdade para todos”, eles defenderam não só a liberdade de sua profissão, mas também os princípios fundamentais do Estado democrático.

Josie Appleton é diretora do grupo de defesa das liberdades civis do Manifesto Club. Discursos e artigos sobre Liberté pour l’Histoire podem ser encontradas no site do grupo. Você pode assinar o 2008 Appel de Blois ou se inscrever como um membro.

Artigo traduzido por Rodrigo Zottis e originalmente publicado em Free Speech Debate.

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