#SomosTodosCarolas

Dependendo do alinhamento moral, todo mundo tolera ou condena o que bem entender.

Renata Carvalho
Liberdade de Expressão em Debate
6 min readSep 29, 2017

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Cuidado com o retorno.

Uma apresentação de arte no Museu de Arte Moderna de São Paulo virou frisson nas redes sociais. Um vídeo compartilhado por sites de conteúdo político alinhados à direita mostrava um homem nu deitado no chão de barriga para cima, cercado por pessoas e sendo tocado nos pés e mãos por uma mulher adulta e uma criança de aparentemente 3 ou 4 anos. A criança interage com os pés e mão do sujeito imóvel e depois engatinha na direção das demais pessoas sentadas no chão que assistem a apresentação.

Lembrando os casos do Queermuseu e do humorista britânico que tirou foto tomando banho com a filha, a apresentação foi acusada de promover pedofilia. Alguns que antes condenavam a cena envolvendo o humorista, hoje defendem a a apresentação do artista Wagner Shwartz; outros que antes defendiam a inocência da nudez do humorista Torben Chris condenam a cena com o artista. Aparentemente, a nudez na frente de crianças tem moral subjetiva e validade seletiva.

Há muito que ser pensando, preferencialmente com calma, sobre o fato.

1º) Inicialmente nenhuma fonte comprovando se tratar do Museu foi apresentada, mas o próprio MAM já se manifestou através de uma nota informando que:

a) se tratava de uma apresentação única, para público reservado;

b) a criança do vídeo estava acompanhada pela mãe — a mulher que também interagia com o corpo do artista.

2º) O Queermuseu não tinha apresentação de contato físico entre crianças e adultos ou mesmo só entre crianças; apenas mostrava imagens (retiradas de um antigo blog que reunia fotos de infância de pessoas LGBT) acompanhadas de jargões típicos da subcultura queer. A mostra tinha, contudo, conteúdo perturbador inclusive para adultos por conter cenas de zoofilia e, até onde se sabe, nenhuma classificação indicativa foi feita;

3º) Nenhuma das situações pode ser considerada pedofilia, tanto no sentido médico, quanto jurídico do termo. No sentido médico, pedofilia é a atração sexual sentida exclusivamente por menores pré-púberes. No âmbito jurídico, o que se condena é a satisfação de lascívia realizada com menores de 14 anos, e estou definindo ambos de forma BEM simplificada.

Estes são os fatos que consegui verificar até agora.

As pessoas reagiram de forma imediatamente inflamada. Algumas, chamando a apresentação de pedofilia e condenando a exposição de crianças a conteúdo sexual — baseando-se somente em sua moral individual como parâmetro e justificativa de críticas. Outras, parecendo cair numa espécie de oposição espelhada, reagiram com descrença nas fontes e desinteresse em debater o assunto só por esse motivo ou, quando debatiam, rejeitavam qualquer hipótese de julgamento possível sobre a apresentação.

Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno, na minha opinião.

Sobre as fontes das notícias

O fato de os mesmos criadores de conteúdo, políticos, militantes e etc que condenaram o Queermuseu com informações falsas (deliberadamente fraudadas ou não) estarem noticiando um novo fato, de forma semelhante (utilizando discurso passional e formando conclusão moralizada e parcial a partir de informações inconsistentes e ausência de verificação total da história) à feita ao falar do Queermuseu pode até tornar seus métodos de informação questionáveis mas definitivamente não exclui a veracidade do que foi exibido. Não por si só, pelo menos. Há uma correlação de fatores que não implica em causa e consequência. É preciso parar de crer ou descrer em algo apenas por causa da fonte e começar a formar opinião com base na informação apresentada. Quando esta for insuficiente, das duas uma: ou nos abstemos momentaneamente de formar opinião ou nós mantemos uma opinião preliminar, bastante cética até que o assunto vá sendo esclarecido em sua totalidade com a maior quantidade de informação possível.

Sobre a presença de crianças expostas à nudez

Conforme explicado pelo MAM, a criança estava em companhia de um adulto responsável por ela. Ainda segundo o museu, não se tratava de uma apresentação aberta ao público geral, sendo apenas para convidados.

Isso talvez ponha uma pedra sobre a questão da nocividade de uma possível apresentação pública, sem classificação indicativa, onde outros menores de idade compareçam. Não exclui, contudo, a possibilidade de debate sobre a validade, necessidade ou utilidade disso de forma ampla, desconectada do caso específico do MAM.

Algumas pessoas, enviesadas pela antipatia nutrida desde o tratamento dado ao Queermuseu, trataram de rejeitar qualquer crítica ao fato de uma criança interagir com um homem nu:

“Agora as pessoas vão demonizar nudez”

“Nunca foram em praia de nudismo?”

“Pais e filhos não podem mais tomar banho juntos que estarão cometendo pedofilia?”

Muita calma para não criar espantalhos…

De fato não há necessidade de se erotizar o corpo de forma extrema. A mera exibição de uma mama, de um pênis ou qualquer parte do corpo não deve, por si só, ser encarada como ato sexual. Isso faria com que uma mãe amamentando em público fosse vítima de acusações infundadas. Isso faz as redes sociais ocultarem, automaticamente, a foto de um gordo sem camisa. Isso torna o corpo humano uma simples máquina de sexo, sendo que ele é muito mais do que isso. E sexo, por si só, não é algo ruim. Ruim é não saber a ocasião certa ou aceitável para exibir sexualidade.

Expor crianças à nudez não deveria ser tabu. Expor crianças à nudez de forma indiscriminada, sim. Pais e filhos podem tomar banho juntos, é claro. Não há qualquer maldade intrínseca a isso, tampouco malefício. O corpo humano não é, de fato, algo sujo a ser escondido, condenado ou motivo de vergonha e não deve ser tratado como tal. Mas uma coisa é expor crianças à nudez de seus pais e mães em ambiente e ocasião controlada; outra é expor crianças à nudez de terceiros, sem parâmetros pra isso. No caso específico do MAM, a exposição foi monitorada pela própria mãe, a partir de seus próprios valores e julgamento sobre o assunto. Por se tratar de apresentação para público fechado, os pais interessados levam seus filhos voluntariamente, movidos por seus próprios julgamentos e controlam essa exposição. Mas, de forma geral, há bom motivos para aprendermos desde cedo a tratar a nudez como algo reservado.

Em primeiro lugar, nosso corpo é a coisa mais privada que temos, depois de nossos pensamentos. Como tudo que é privado, todos temos obrigação de preservar, usar e resguardar contra o mau uso por parte de terceiros. Crianças devem aprender que o corpo merece privacidade tanto quanto merece ser tratado com naturalidade. Essa privacidade se refere tanto ao próprio corpo quanto ao corpo alheio.

Isso não é moralismo. Ensinar crianças a estabelecerem limites de privacidade serve para estabelecer individualidade, noções de autopropriedade e liberdade, além de propiciar interações sadias com terceiros, justamente por dar-lhes essa visão de si mesmas e dos outros. Isso ajuda, inclusive, a protegê-las de reais pedófilos abusadores.

Sobre o caráter público de exposições de conteúdo polêmico

O grande erro dessas exposições não é o seu conteúdo. A liberdade de expressão não seria liberdade se permitisse apenas o que consta de uma lista de permissões. A moralidade subjetiva não deve ser parâmetro para determinar o que pode ou não ser realizado ou expresso. Ela serve, contudo, como parâmetro individual para as pessoas consumirem ou não o que é mostrado e expressado por terceiros. E, por conta disso, uma descrição clara do conteúdo somada a uma indicação de classificação etária é ESSENCIAL a qualquer conteúdo, seja ele artístico ou não. Isso não impede o artista, apenas guia o espectador.

O fato de esse tipo de exposição organizada por museus públicos ser consequentemente financiada com dinheiro público também não justifica qualquer tipo de censura — prévia ou póstuma — a seu conteúdo. A sociedade é plural e os cidadãos contribuem de forma difusa para abastecer os cofres públicos. Cada progressista pós-moderno, conservador ou liberal contribui e todos têm direito a retorno do investimento. Pode-se questionar se o Estado possui outras prioridades onde investir dinheiro mas não a validade de investimento tendo como parâmetro a moralidade do conteúdo conforme esta ou aquela inclinação filosófica. Moralidade subjetiva ou gosto artístico pessoal não servem para delimitar esse debate.

Talvez seja o caso de a sociedade aprender a usar esses casos para analisar a forma como cada um desses temas vem sendo tratado e fazer os ajustes necessários onde for benéfico. Isso, porém, só deve ser feito de forma racional e fundamentada após um debate honesto, baseado em fatos verificados e livre de sensacionalismos.

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