Libido, lodo e fel

Marília Moschkovich
Libido, lodo e fel
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6 min readJun 19, 2022

É domingo, dezenove de junho, o São João e a parada LGBT fervilhando, e faz quinze graus em São Paulo. Me encontro num mar triste. O oceano profundo do lodo do luto, velho conhecido. A palavra luto veio de lodo, e lodo é uma palavra que teve um monte de sentidos, todos eles ligados ao barro, ao peso, à lama. O barro que aprendi no luto da pandemia de Covid-19 a manipular pra virar cerâmica. O barro que aprendi a sentir secar na ponta dos dedos, que entendi ter memória, o barro que é pesado e leve e frágil e plástico e duro e flexível e irrevogável. Barro não esquece. Lodo não esquece.

Uma coisa deu errado hoje. Uma coisa bem coisica mesmo. Deu errado e desencadeou uma corrente de tristezas se sobrepondo. Fiquei triste pelo que deu errado (uma bobagem, juro) e em seguida fiquei triste por outra coisa qualquer, e outra, e mais outra, e acabei ficando triste pelo mundo todo. Minha filha me perguntou porque eu estava com as mãos no rosto. Enxuguei meia lágrima com as costas da mão e sorri enquanto ela me abraçava pra consolar a chateação. Viver um momento triste ou difícil tendo uma criança em casa é uma experiência às vezes confusa. Como atravessar um luto (ou vários) com tanta pulsão de vida?

Um amigo psicanalista que me falou, quando contei que havia descoberto um tumor no fígado: “que você não perca sua pulsão de vida!”. Vida! Na maior parte do tempo é tudo o que eu sinto e desejo e desfruto, mesmo, uma pulsão de vida voraz, uma libido avassaladora. Sempre fui assim, e o aprendizado de me deixar afundar e tocar o lodo do poço (ou do mar) foi uma conquista. Talvez um luto seja como um filho, de certa maneira… Dizem que nenhuma experiência de ter filho é igual a outra, mesmo quando se trata da mesma pessoa com dois (ou mais) filhos diferentes. Talve toda experiência de luto seja também particular, mesmo absolutamente banal.

Quando minha filha nasceu foi mais ou menos isso que eu pensei. Como é possível viver ao mesmo tempo o sentimento extraordinário de parir, que é simplesmente a atividade mais banal da história da humanidade? A impossibilidade de respostas a esse tipo de pergunta só me lembra o quanto este nosso sistema de compreensão do mundo, mediado pela linguagem, baseado em uma lógica formal mínima, é insuficiente. Ainda bem. Temos a música, a arte, os poemas. Escapes da linearidade. Lá estava, anos atrás, meu lodo. Num poema de 2015 escrevi assim:

poema “poço pedra peixe pulso” de Marília Moschkovich

As asas rasgadas despencando num desfiladeiro de ossos e esterco. O lago parado, água funda, fundo de lama, lodo. Era essa a imagem que eu conseguia usar pra desenhar o que estava vivendo, na época, quando minha namorada morreu. Me lancei ao luto. Um outro luto. Me pegou de surpresa quando, nesta semana, eu procurava um nome para este diário público de crônicas de vida e morte, e descobri a etimologia da palavra “luto”. Eu queria fazer uma referência a outro diário de luto, os “Diários do Luto” de Roland Barthes, livro que me deu a sensação de estar acompanhada na solidão triste daqueles dias, há quase uma década. Não queria repetir o nome. Me perguntei o que era luto, de onde vinha essa palavra, e fui olhar os dicionários etimológicos que temos aqui em casa. Lodo. Voltei ao poema imediatamente. Não tem a palavra lodo, não tem a palavra luto, mas é luto e lodo do começo ao fim. Mentira. Até quase o fim. O fim é gozo. A pequena morte que pare a vida.

Foi nesse insterstício entre gozar e morrer que passei os últimos dias. Há cerca de uma semana descobri que meu fígado abriga um tumor. Acompanhado de filhotes tumorzinhos. Chega a ser um pouco ridícula a nomenclatura escolhida pela medicina para designar aquilo que adoece sem ser câncer: benigno. Como se fosse algo ativamente bom. Benigno, aquilo que faz o bem. Um adenoma hepático que pode se romper me mandando para o hospital com chances significativas de óbito é benigno. Um adenoma hepático que pode eventualmente virar câncer e, por isso, me faz passa por exames invasivos e cirurgias complexas com consequências pelo resto da vida, é benigno. Um adenoma hepático que faz com que seja arriscado demais qualquer tratamento hormonal para os sintomas da endometriose, me deixando como única opção a cirurgia (no mínimo a laparoscópica, na pior da melhor das hipóteses uma histerectomia), é benigno. Benigno porque um câncer no fígado seria pior.

A primeira frase que pulou na minha cabeça quando saí do consultório médico semana passada foi: “estou morrendo”. Seguida de um reflexo de muitos anos de análise: “sempre estive morrendo, mas talvez eu esteja morrendo mais rápido do que previa”. O medo, a tristeza, a incerteza. O luto imediato de saber que pelo menos um dos planos que eu tinha na vida (engravidar e parir novamente) aumenta tanto o risco de crescimento do tumor e o risco de que se torne um carcinoma, que terei de abandoná-lo (e que talvez o melhor, no mínimo do mínimo, seja fazer uma laqueadura garantindo que isso não aconteça). A melhor das hipóteses ainda é uma das hipóteses do pior. Benigno é não ter tumor algum.

Também percebi a reação quase sempre mediadora das pessoas amadas diante da notícia, me dizendo com todo o amor: “Espero que não seja nada grave”. Ter que explicar que, se nada for ainda pior do que já parece, já é grave. Grave e raro: esse tipo de tumor tem ocorrência registrada de 35 mulheres por MILHÃO (isso, milhão) de mulheres anualmente. Trinta e cinco em um milhão. Por que eu? A coincidência maluca de que isso ocorra em quem é alcoólatra — doença rara no fígado, absolutamente não relacionada ao alcoolismo. Por que isso?

No meu impulso de cientista fui ler papers. Entender o que desse pra formular boas perguntas para minha médica de família, minha ginecologista que acompanha minha endometriose, meu gastro. Formular hipóteses pra tentar entender as correlações já mapeadas entre adenomas hepáticos, síndrome metabólica, glicogenoses e outros dramas crônicos mais. Enfrentar de forma não-gordofóbica a obesidade como fator de risco — é possível? Entender o que significam certas cirurgias, olhar cenários. Diferente da ansiedade que isso pode causar a boa parte das pessoas, saber o que é sabido de fato pela medicina com evidências e o que não se tem muita comprovação me deixa mais tranquila. Me permite acompanhar e avaliar o acompanhamento e avaliação que os médicos fazem de mim. Tomar decisões pelo meu corpo porque, afinal, o corpo é meu. A vida é minha. Vida.

Encontrei a vida pensando em um nome para esta série de textos. Parti dos “Diários do Luto” de Barthes, passei para o lodo e pensei, ora, qual é o antônimo de “luto”? Os dicionários me diziam “alegria”. Mas alegria é o antônimo de tristeza, e luto não é tristeza. Não só isso. Luto é uma travessia contraditória. Um balanço em falso no dínamo de existir. Luto é um trabalho, uma jornada. O instável, o passivo, o raivoso. É tanto! Luto é o piche nos campos de arroz. Piche tendo sido peixe, vida. Lodo fértil que margeia as raízes do mangue, berçário das espécies. Odor de decomposição, alimento. Qual o antônimo de luto?

O antônimo de luto só pode ser tesão. Pulsão de vida. Libido. Libido, luto. Desejo. Pulsão de vida, libido, desejo, como oposição à melancolia que Freud quis que acompanhasse o luto no título de um de seus mais conhecidos textos. Na raiz da melancolia, “chole”. “Chole” é bile, fel. Humor figadal. Substância amarga. É disso que eu vou falar nesta série. De luto em vida. De tom amargo. Do desejo de escrever como se saboreia um chocolate muito concentrado. Ou copo de cerveja bem lupulada. Alimento, lodo, luto. Fel.

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Marília Moschkovich
Libido, lodo e fel

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres