O Jogo da Vida ou Paciente X

Marília Moschkovich
Libido, lodo e fel
Published in
8 min readJul 21, 2022
Tabuleiro, roleta e acessórios do Jogo da Vida vendido na década de 1980 no Brasil.

Quando eu era criança, gostava muito de jogar dois jogos de tabuleiro. Banco Imobiliário e Jogo da Vida. Quem cresceu nas décadas de 1980 e 1990, na classe média paulistana, não escapou dessa experiência. O Banco Imobiliário era jogado com dados, e tinha uma casa do tabuleiro especialmente dedicada a eventos turbulentos, que continha os dizeres: “SORTE ou REVÉS”. Eu não sabia o que era essa palavra, “revés”. Mas entendi que revés não era exatamente azar. “Ao revés” é mais ou menos ao avesso, ao inverso. É quando tudo fica uma zona porque algo interrompe, atrapalha o fluxo que as coisas aparentavam ter. Quer dizer, naquele jogo — o Banco Imobiliário — se você não tivesse um “revés” era apenas o seu esforço e mérito próprio (risos), além da estratégia, que determinariam suas chances de sucesso.

No Jogo da Vida movíamos os peões (um pequeno carro, afinal, que espécie de ser humano adulto não tem carro? — mais risos) pelo tabuleiro e, diferente do olhar de business do Banco Imobiliário, o tabuleiro da Vida tinha eventos como “você se casou”, “seu filho nasceu”, “se formou na universidade”, “seu salário é tal” e outros dramas humanos banais. Era absolutamente fascinante. Afinal, sendo uma criança meio precoce e com meus oito anos de idade, eu pensava com alguma frequência em tudo que estava por vir. Quem eu me tornaria? Que lugares conheceria? Que emoções poderia sentir? Não me lembro de pensar com ansiedade e tensão, mas sim de forma muito curiosa, empolgada. Sempre gostei muito de viver.

O Jogo da Vida era jogado com uma roleta. Sim, uma roleta. Uma pequena, charmosa e colorida roda da fortuna que indicava o quanto se avançava. Não havia tiragem de cartas de “Sorte ou Revés”. Era tudo sorte e revés. Revés. A palavra que não tem saído da minha cabeça é essa. Não me sentia assim desde 2013, quando tive um crescimento anormal no pescoço, um nódulo esquisitíssimo, e por uns três meses convivi com a suspeita de câncer. Me lembro do rosto do muito competente clínico geral me dizendo que havia três possibilidades: doença autoimune, câncer, ou qualquer outra coisa rara. Logo eu, que sempre me diverti com puzzles médicos assistindo a série House. Também me lembro da primeira resposta, após as primeiras análises patológicas da biópsia feita na cirurgia de retirada de nódulo que deixou meu trapézio parcialmente paralisado para sempre: “sabemos que não é doença autoimune, ainda não é possível ter certeza se é câncer”.

Empacota o troço que meu corpo produziu, manda pra laboratórios e universidades na Europa e nos Estados Unidos. Equipes e equipes. Assina o termo de autorização pra ser Paciente X em um paper quando a análise sair. Meses depois, eu ainda em reabilitação para conseguir movimentar o braço normalmente, o resultado: não era câncer. O alívio. Era o quê? Um troço muito doido e raro chamado Doença de Kikuchi-Fujimoto. Como eu não tive maiores sintomas depois da retirada do nódulo, ficou por isso mesmo e minhas três sessões semanais de fisioterapia com duração de 3h cada. Eu me sentia tirando uma cartinha da pilha “Sorte ou Revés” no Banco Imobiliário e lamentando que, putz, revés dessa vez.

Quando ouvi a palavra “adenoma” da boca do gastroenterologista que tem me acompanhado eu não vi mais como uma carta de baralho. Ou melhor, vi, mas não como uma cartinha de “Sorte ou Revés”. Uma década e muita vida (e análise) mais tarde, o Banco Imobiliário ficou empoeirado na estante e eu voltei pro Jogo da Vida. A roleta, os quadradinhos. Tudo é sorte e revés. Parecia que eu estava dando um peteleco no ponteiro da roleta e contando as casinhas. Uma, duas, três, quatro, cinco… Adenoma hepático. Fique uma rodada sem jogar, pague $30000 em despesas médicas [valores não corrigidos para moeda corrente]. Você sai desta casa apenas se, rodando a roleta novamente cinco vezes, tirar o mesmo número de forma consecutiva em 4 delas. Ok, estou exagerando.

No tarô, a carta que encerra a primeira metade da jornada que vai de 0 a 21 é “A Roda”, também conhecida como “Roda da Fortuna”. Um nome mais bonito para a “roleta da sorte” dos jogos da vida. A Roda da Fortuna também é representada de forma mística e cheia de símbolos no tarô de Pamela Smith (Waite-Smith ou Rider-Waite-Smith). Eu prefiro a simbologia do baralho francês pra essa carta em particular (a bem da verdade, embora até hoje tenha usado mais os baralhos baseados em Smith, eu ande preferindo o marselhês). No tarô de Marselha, o Arcano X mostra a roda como um objeto real, concreto, pegável. Uma pequena roda gigante, aparentemente de madeira, em que três divindades simbólicas se alternam em permanente movimento. Uma esfinge no topo carrega a espada da justiça e uma coroa (que é um dos símbolos clássicos do tarô para a conexão com o mistério, o divino, o incontrolável, o indizível, o mental, o etéreo). O topo é uma plataforma reta, estável, uma espécie de freio ou posição de comando. A esfinge é a única figura que não está presa à roda, e que pode estar fisicamente relaxada.

Do lado esquerdo da carta há um macaco, interpretado tradicionalmente como símbolo de regressão (por comparação aos humanos, sim, antropocêntrico, eu sei, mas alô, é a França né). Aquilo que já esteve no alto, que já teve sua vez, que passou, que não serve mais. A posição de ser passado. Do outro lado um cachorro ascendendo, em referência à morte. O futuro. Um ciclo infinito de dois, mediado pelo três. Uma representação bastante adequada à maneira ocidental de enxergar o mundo. A mesma epistemologia que embasa a medicina, o vocabulário dos tumores, os exames laboratoriais, o Jogo da Vida. A esfinge é o três. O mistério, o vazio, a potência, a criação. O que se desenrola no topo da sucessão infinita de eventos do tipo “sorte” ou “revés”, “vida” ou “morte” e daí em diante.

Arcanos maiores do tarô de Marselha — Editora Alfabeto

Nesse baralho, a carta que precede a Roda da Fortuna é o Eremita. Uma conexão direta com a esfinge. O Eremita é um símbolo da pesquisa, do estudo, do conhecimento adquirido para além do que se pode enxergar só com o senso-comum, só com os próprios olhos. Ele carrega uma luz, indica possibilidades de caminho a partir do que descobre que sabe. Uma espécie de cientista (ou de divã). A ideia de que acessar a roda, compreender seu topo, passa por confrontar investigações íntimas e muito próprias da existência, saindo do próprio umbigo e do imediato. O mistério do que escapa a esse esquema de pensamento baseado em binários e terceiros vazios. Tudo é sorte. Tudo é revés.

Depois da roda, a narrativa do tarô de Marselha apresenta mais um trio, então, que tem como zero o Arcano (ou paciente) X. A Força, ação e atividade ainda que produzindo suavidade, se contrapõe de alguma maneira ao Enforcado/Pendurado. A Força doma a besta pela boca; é ação e atividade, ainda que suave. O Pendurado é espectador da própria crise. Observa tranquilo a própria imobilidade dada pelas circunstâncias — até porque a corda não está em seu pescoço. Ele não está sufocando, e nada faz. Em seguida, a necessária mediação entre um e outro: a morte. Fazer nada é fazer algo, quando se está vivo. Fazer algo é fazer algo também. A roda que alterna vida e morte pra produzir existência. A morte que ceifa o que já não serve. Limpa o campo. Fertiliza. Sorte e revés. Só não deseja quem está morto. Só morre quem está vivo. Sorte ou revés. Roleta.

Foi assim que passei o último mês. Investigando minha própria vida. Eremita apartada de grandes contatos sociais. Mantendo o jogo (ou a roda?) da vida cotidiana em movimento. Acorda, café da manhã. Tira uns dias de folga pra curtir as férias da criança. Dor implacável. Há uns quinze dias passei doze horas no pronto atendimento de um hospital de excelência aqui em São Paulo. A dor lancinante no abdômen tinha começado quando acordei, e fui jogada no chão do banheiro. Encontrei conforto em algumas posições. Era intermitente. Vinha em ondas. Nem a posição ajudava quando a onda vinha — mas ajudava a onda a parar. Respirava. Exames e mais exames. Vida-morte. Vida-morte. Vida-morte. Sangue, urina, imagem, contraste. Não é o fígado. Não é o pâncreas. Não é vesícula. Não é cálculo renal. Analgesia, antiinflamatório, muito sono. Mas veja como é a vida — que jogo! — que no momento de me confrontar com a morte de novo produz contexto pra minha filha dar mais um passo na própria autonomia e aprender a dormir fora de casa sem mim e sem o pai. No dia seguinte eu com dor, e comemorando. Tem dessas, né.

Fui embora medicada. Nos dias seguintes a coisa ficou mais suave, mas percebi que não desapareceu. Em alguns dias aumenta, em outros diminui. Espero para fazer mais um exame. Sigo tratando meu sangue a cetoprofeno ou buscopan, dependendo do dia — ou, na verdade, da noite, porque é quando dói mais. Leio papers. Penso se o Kikuchi-Fujimoto tem alguma coisa a ver com isso. Se tenho mesmo um corpo que prefere errar pra mais do que pra menos na hora de reagir. Mas meu corpo não é um defeito, levei anos pra aprender. Meu corpo sou eu. Eu sou isso. Eu sou isso e por enquanto o que posso fazer é criar hipóteses, descartá-las depois de uns dias, conversar com alguns médicos e me irritar porque como podem fazer tanta propaganda de que sabem coisas quando na verdade são só seres humanos como eu?

Acho que a maior diferença entre ter jogado com dados em 2013 e estar jogando agora com uma roleta é essa: hoje ando devagar porque já tive pressa.

Tocando em Frente (Almir Sater e Renato Teixeira)

Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Hoje me sinto mais forte
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei
Ou nada sei

Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs

É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Penso que cumprir a vida
Seja simplesmente
Compreender a marcha
E ir tocando em frente

Como um velho boiadeiro
Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou

Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs

É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Todo mundo ama um dia
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora

Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz

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Marília Moschkovich
Libido, lodo e fel

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres