Sessão da tarde

Angelina, Shirley, vinho e cinema argentino 

Dauro Veras
Lido e Leno, Visto e Veno

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Cinema em casa, vinho e ócio. Ah, a hedonista experiência vespertina de abrir um merlot (não leve a sério aquele sujeito de Sideways, o merlot tem seu valor), dar um gole no gargalo, limpar a boca com as costas da mão e se jogar na poltrona com o controle remoto… Com as novas tecnologias de vadiagem, tudo isso está ao alcance do desocupado moderno. Mas não pense que é fácil demais para cavalheiros de bom gosto. Sapos venenosos, zap, leilões de vacas leiteiras, zap, superbabás de meninos chorões… A arte de zapear nos ensina que passado e futuro são ilusões e o presente pode ser uma merda — já dizia um mestre zen noção que uma vez foi lá em casa e comeu o meu queijo. Mas com paciência, uma hora você termina encontrando um Dirty Harry pra botar o mundo em ordem e progresso.

Enquanto isso, vá bebericando o seu vinho de doze reais, sem culpa: quando o momento for propício, você vai devolver aquelas moedas ao cofrinho do seu filho. Às vezes, Angelina Jolie resolve pintar na programação, ameaçada pelo vilão que, com a ponta de uma faca, anuncia que receberia as piores notícias de seus lindos lábios (ainda não leu o romance de Marçal Aquino? Vai que é bom). Já gostei de Angelina, confesso. Na juventude, lhe prestei demoradas homenagens. Mas peguei nojinho por causa de seu costume de derrubar malvados em filmes B com dolorosos golpes nos países baixos. Sim, sou solidário a homens que se dobram por esse motivo. Quando as opções televisivas estão irrespiráveis, apelo para a boa Shirley. Sim, minha vizinha de login Shirley e senha Shirley tem alma generosa, embora não saiba, e conexão wi-fi de dez megas.

Tenho baixado uns filmes argentinos deveras interessantes. El hombre de al lado é sobre um conflito entre vizinhos por causa de uma janela aberta de frente pra outra. Baixaria com classe, no cenário de uma casa planejada por Le Corbusier. Un cuento chino, comédia agridoce em que Ricardo Darín acolhe a contragosto um imigrante chinês e fica tentando se livrar dele o filme inteiro. Com o mesmo Darín, por quem muitas de minhas amigas suspiram, há o excelente Abutres (Carancho), sobre advogados pilantras envolvidos com fraude em seguros de acidentes de trânsito. Educativo.

Mas meu espaço se esgota, então vamos logo ensinar a pescar: instale um programa de torrent no seu micro, aprenda a usá-lo com algum amigo nerd e aproveite os deliciosos momentos que o universo do compartilhamento de arquivos pode oferecer. Há bons sítios para escolher o repertório, como o Internet Movie Data Base (imdb.com). Se você tem cachorro, gosta de caminhar e de blockbusters, pode se inspirar nos cartazes da locadora de vídeo da esquina. “Mas Doutor Pedrosa, eu não tenho internet em casa”. Bem, meu caro, eu só lamento. Nem todos podem ter uma vizinha como a Shirley.

Pedrosa da Silva é doutor em estudos híbridos pela Metatag University e especialista em redes de algodão cru. Por motivos religiosos, nunca trabalha às terças, quintas e sábados. Às segundas, quartas, sextas e domingos, por motivos profanos, dedica-se às artes cínicas.

Publicado originalmente na Fired, a revista do desempregado moderno.

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