A linha tênue entre The Handmaid’s Tale e a nossa realidade social

Guilherme Cunha
Lindíssima disse tudo
6 min readJul 3, 2018

Sabe aquelas séries que sempre te falam que você PRECISA ver? Se The Handmaid’s Tale ainda não foi uma dessas, temos que avaliar melhor esse seu ciclo de pessoas que indicam séries.

The Handmaid’s Tale, ou o Conto de Aia é uma série norte americana baseada na obra literária de Margaret Atwood escrita em 1985. Produzida pela plataforma de streaming Hulu, a série que atualmente encontra-se em sua segunda temporada e traz uma espetacular narrativa não apenas no sentido ideológico e rico em sua história, mas no sentido cinematográfica através de uma fotografia magnífica e uma produção impecável que já a fez levar mais de 15 prêmios, incluindo o famosíssimo Globo de Ouro.

Explicando bem brevemente, The Handmaid’s Tale conta a história de um futuro distópico onde o mundo inteiro encontrasse em um caos de infertilidade e escassez de alimentos, e a partir dessa premissa, uma congregação religiosa toma conta dos Estados Unidos através um golpe de Estado, e institui-se uma nova sociedade teocrática denominada de República de Gilead.

Nesta sociedade, as mulheres perdem praticamente todos os seus direitos, e são obrigadas a se comportarem socialmente através de espécies de “castas”, onde aquelas que estão na parte mais baixa dessa pirâmide possuem apenas uma única função: doarem seus corpos para o “milagre divino da procriação” (entre muitas aspas).

Essas são as Handmaids (ou Aias), as mulheres que pecaram no passado e que agora são obrigadas a servirem seus corpos férteis sendo estupradas todo mês pelos comandantes (os homens mais poderosos) através de um ato denominado por eles de “cerimônia”.

Na história, acompanhamos a angústia impactante da personagem principal June (interpretada pela talentosíssima atriz Elizabeth Moss), que é retirada a força de sua filha e seu marido, para servir como Handmaid na sociedade opressora de Gilead.

Será que The Handmaid’s Tale está tão longe assim da realidade em que vivemos?

Meu corpo suas regras

As cenas mais chocantes e difíceis de serem digeridas em THT são as que June é forçada se submeter a atos sexuais com o homem da família a que pertence. Durante este “ritual” (estupro), a Handmaid deitada ao colo da esposa do comandante não deve assumir nenhum papel além de servir como um útero com o potencial de reproduzir uma vida. Em Gilead, June não tem controle, nem direito sobre o que deseja fazer com o seu corpo , o corpo de uma mulher fértil. June deve obedecer a ordem social, e gerar herdeiros para uma sociedade em extinção.

Que mulher, hoje, tem total controle sobre o corpo em que habita?

No mundo real, Janaína Aparecida Quirino é uma mulher, mãe de 8 filhos e moradora de Mococa (SP). Janaína recentemente foi submetida a um processo de laqueadura sem o seu consentimento por ordens judiciais.

ATENÇÃO: Um homem, ordenou que uma mulher passasse por um procedimento cirúrgico de esterilização mesmo sem a sua permissão.

“Não tive estudo, não sei ler direito. Eles me davam o papel, liam assim mal e mal pra mim, e eu assinava.” Janaina, em entrevista ao Fantástico.

O promotor de Justiça Frederico Liserre Barruffini, responsável pela ação, alegou que a laqueadura era a única forma de proteger a vida de Janaína e seus filhos, justificando que ela demonstrava sinais de dependência química e que deveria passar pelo processo, mesmo sem a sua vontade.

Lembrando que, se uma mulher, mesmo por livre e espontânea vontade decide realizar a cirurgia de esterilização voluntária através do Sistema Único de Saúde (SUS) é necessário, por lei, a AUTORIZAÇÃO do marido para o procedimento ser feito.

Sim, não é ficção seriada. É uma realidade.

Mesmos espaços, diferentes lugares

Na história de THT, as handmaids também precisam se vestir cobrindo todas as partes de seus corpos usando uma espécie de chapéu que as impedem de serem vistas, e de verem o mundo. Elas não podem ter interações longas entre si ou com qualquer pessoa da sociedade de Gilead, e não são permitidas a andarem em espaços públicos além do caminho de suas casas e o supermercado onde fazem as compras. Se descumprirem qualquer uma dessas regras, podem ser severamente punidas, ou até mortas.

Não é uma tarefa difícil entender como toda a opressão presente em THT também existe diluída na nossa sociedade e na naturalização do lugar onde as mulheres culturalmente são colocadas. Mulheres não andam nos espaços públicos da mesma forma que os homens andam, principalmente por medo.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Datafolha, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 90% das mulheres brasileiras têm medo de serem vítimas de alguma agressão sexual.A realidade dessa estatística está por trás de uma cultura do estupro, que resumindo a importante complexidade deste termo, seria trazer naturalidade aos diversos tipos de violência dos homens contra as mulheres, não só a física.

Gênero como função social

Na série, não só as handmaids possuem uma função social bastante demarcada na estrutura de Gilead. Também acompanhamos as “esposas”, que basicamente possuem o papel de darem apoio emocional aos seus maridos, as “martas” que são as empregadas domésticas das famílias e as “tias” que são as mulheres mais sábias que ficam responsáveis por cuidar e treinar as handmaids de forma que elas possam garantir suas posições sociais em suas respectivas casas. Essas, são as únicas autorizadas a ler e escrever.

A mulher como exclusivamente “dona de casa” é uma figura presente desde muitas gerações passadas. Não é incomum ouvirmos discursos que atribuam mulheres a funções relacionada ao lar, cuidar dos filhos, etc. Para ilustrar bem esse pensamento, trago-vos o belíssimo discurso (de bosta) do nosso atual presidente Michel Temer, em rede nacional, para o Dia de Mulher neste ano:

“Na economia também a mulher tem grande participação. Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços no supermercado do que a mulher.” Michel Temer

Quando um presidente de um país diz, em rede nacional uma fala tão simbólica quanto esta (em termos de sentidos), podemos entender de perto a problemática por trás de um discurso que representa muito claramente (e muito mal) o lugar onde as mulheres há muito tempo são e estão sendo colocadas em nossa sociedade.

Caos democrático ou a ordem opressora?

Outro ponto colocado em questão no enredo da série é o principal argumento por trás daqueles que instauraram o sistema de Gilead. Para os fundamentalistas, essa sociedade não surge como um problema, mas como uma solução para o caos que estava sendo vivido antes. Nessa nova república, além de estarem (supostamente) contribuindo para a solução da crise da infertilidade, todos possuem casa, comida e o conforto. O caos é finalmente controlado. Mas algumas pessoas precisam pagar o preço disso.

É melhor viver uma democracia em caos ou manter o controle em um sistema totalitário e opressor?

Na história do nosso país, vivemos 21 anos em um regime de ditadura militar. Um regime de opressão e censura que levou a morte de muitas pessoas que lutavam contra aquele sistema. Hoje, o Rio de Janeiro encontra-se em intervenção militar, e ouvimos constantemente um discurso de que trata-se de “segurança”. Além disso, há quem ainda apoie a volta daquilo que vivemos em 1964.

Alguns se sentem seguros e privilegiados quando cruzam com militares armados andando tranquilamente com metralhadoras na mão na calçada de suas ruas. Já outros, pagam o preço dessa falsa sensação de segurança, na maioria das vezes, com suas próprias vidas.

"Não tira o Temer, vai dar muita confusão". Você já deve ter visto esse tipo de pensamento por aí, não é? Afinal, é muito fácil nos acomodarmos em um sistema não democrático quando sabemos que a saída é bagunçar toda a ordem social.

The Handmaid's Tale não só nos impacta através de uma narrativa que se assemelha bastante da nossa realidade social, e do lugar que achávamos que talvez nunca poderíamos chegar. Mas nos ensina o quanto é importante lutarmos para um estado laico e democrático, que seja feito para todas as pessoas. Independente de gênero, raça, crença ou descrença, o importante é sempre caminharmos para a liberdade e inclusão de todos.

Blessed be the democracy.

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