A podosfera e a militância
Existente pelo menos desde o início da década passada no mundo anglófono, o formato de podcast está cada vez mais “pegando” no Brasil. A palavra podcasting é um neologismo formado de uma união das palavras broadcasting, palavra inglesa pala “radiodifusão” e iPod, o nome do revolucionário leitor de mp3 da Apple. Este formato torna possível a difusão de conteúdo de áudio sem a necessidade de sinais de rádio, sendo tudo transferido online e armazenado na memória do aparelho do usuário, seja ele um iPod, um computador ou qualquer outro que leia e reproduza o formato mp3.
Esse suposto atraso da chegada do formato no Brasil em relação aos Estados Unidos (escolhido aqui como exemplo por ser sempre posto como o modelo a ser seguido pelo Brasil) não se dá por um desfalque do brasileiro em relação às tecnologias de comunicação nem sua falta de atenção ao que “tá trending” pelo mundo. A própria forma em que o meio funciona é a culpada dessa demora de aumento de popularidade. Por não depender de sinais de rádio, é impossível que alguém “sintonize” em algum podcast acidentalmente. Além disso, por se tratar de produtos na majoritariamente imbuídos com um espírito “do it yourself” ,muitas vezes até abraçando o amadorismo por completo, quase nunca há vínculo algum com instituições midiáticas grandes (lógico que existem os podcasts feitos por estas instituições, mas eles são um número bem pequeno do todo e geralmente não possuem tantos ouvintes cativos), o que diminui para quase zero o orçamento de publicidade da grande maioria dos podcasts. O podcast, então, é um meio que necessita principalmente do boca-a-boca para crescer.
Crescendo via boca-a-boca e plenamente consciente de sua incapacidade de vencer os produtos da mídia hegemônica em questão de qualidade técnica e número de ouvintes, o podcast se torna então o meio de comunicação de nicho por excelência. Esses nichos podem ser criados de acordo com o assunto do programa, ou o que podemos chamar de “gênero”, em questão ou de sua “pegada”: mesmo que um ouvinte escute podcasts sobre vários assuntos, os programas sobre jogos eletrônicos, por exemplo, possuem no geral um público diferente dos de esportes ou os de política. No entanto, a questão da “pegada” é o que separa mesmo os nichos da podosfera, e isso fica mais evidente quando tratamos de podcasts sobre ou que mencionam política nacional. Por mais que um usuário escute ao mesmo tempo programas sobre esportes, jogos eletrônicos e música é bastante improvável que se esse usuário for de esquerda, ouça um podcast de um gênero querido, mas que os apresentadores e as opiniões proferidas por eles sejam abertamente de direita, e vice-versa.
Muitos dirão que esse fenômeno é nocivo, já que teoricamente reforça as bolhas ideológicas das pessoas, já tão fechadas devido às redes sociais. Balela total. Acho que o que está acontecendo com os usuários de podcast é super potente, na real, no sentido em que aumenta a discussão política de uma forma em que não estamos acostumados.
Por programas completamente independentes e na maioria das vezes sem fins lucrativos, os podcasters podem falar o que quiserem sem medo de queda de audiência. Você não precisa ser isentão se não quiser, mesmo sendo um programa bem conhecido, como o Anticast, por exemplo. Eles começaram falando de Design e quando menos esperávamos lançaram um programa longuíssimo metendo pau em certas questões éticas de posicionamento político dos integrantes do Nerdcast, de longe o maior podcast do país e uma grande influência para o próprio Anticast. À partir daí, eles foram perdendo cada vez mais a inibição de falar sobre política para virarem a grande referência de podcast político à esquerda, chamando para suas pautas desde social-democratas até o mais ferrenho comunista da podosfera brasilera.
Ninguém de direita vai escutar o programa? É verdade, mas isso realmente não importa. O que o Anticast faz muito bem e que também tem sido feito por uma série de outros projetos (em todo espectro político) é utilizar a natureza de nicho dos podcasts e o nicho ainda menor de um posicionamento político para discutir assuntos radicais demais para outros tipos de publicação, que precisam “fazer uma média” com os anunciantes para sobreviverem. As discussões traçadas nestes programas de nicho só contribuem para o processo democrático, porque colocam em circulação, mesmo que em uma escala reduzidíssima, ideias que nunca seriam levadas em consideração pela mídia hegemônica.
Quando digo que não importa se os adversários políticos ouvem ou não é porque esses programas não estão nem aí para convencer o outro lado, mas sim fortalecer seu próprio. Por mais que alguns ainda insistam em sempre ouvir os dois lados sem julgamento (e isso é uma indireta ao Mamilos, se não ficou claro), isso não dá em nada, porque militância política não é conciliação, mas um combate de ideias conflitantes, principalmente nos tempos extremos em que vivemos. Ao se fechar na própria esquerda (existem exemplos na direita também) e discutir ideias e projetos de sociedade radicais, o Anticast e seus “irmãos” estão na verdade sendo uma ferramenta de fortalecimento de laços entre pessoas com objetivos parecidos e meios diferentes. A esquerda brasileira, a partir destes podcasts, está conhecendo melhor a si mesma.
A tão almejada “união da esquerda” é realmente impossível, mas os progressistas, idependentemente de corrente política, só irão vencer o conservadorismo se estiverem mais ou menos coerentes entre si, e o meio do podcast, se bem utilizado, é ótimo para alcançar essa coerência.