Agora a representatividade foi longe demais

Caio Amaral
Lindíssima disse tudo
4 min readApr 30, 2018

Olha lá! Mais uma personagem LGBTQ mal aproveitada e que parece estar dando as caras apenas para cumprir alguma pseudo-representação na narrativa daquela ficção seriada.

O título e a frase aí de cima, por não apresentarem um pensamento ou fala meus, e sim um discurso um tanto quanto comum, talvez devessem estar entre aspas. Mas, assim como discorrem sobre uma sensação de falso pertencimento, tentando transmitir que representatividade em objetos de entretenimento, muitas vezes, se faz presente apenas para gerar buzz irrelevante e descompromissado, decidi entrar em uma linha de raciocínio parecida e fingir que esse tipo de discurso é exclusivo e pertence a este texto. E não pertence.

O “eu” e o “nós”, o indivíduo e a sociedade, em tempos de pós-qualquer coisa, configuram uma linha tênue e que ora batem na tecla de uma “identidade-eu”, ora insistem na ideia de uma “identidade-nós”. A primeira discorre sobre uma percepção de que eu, você e qualquer um por aí possui uma identidade única e particular, intrínseca às convicções que cada um dos indivíduos possui, às vivências pelas quais passou e às inúmeras e distintas características que compõem suas personalidades. O segundo tipo de identidade seguiria uma concepção um pouco divergente, alegando que o que cada um de nós enxerga como “sua identidade”, na verdade, é um conjunto de padrões e costumes comuns à sociedade na qual se está inserido — e, dito isso, pressupõe-se que você e aquele seu vizinho, embora você tanto se esforce dizendo que não, uma vez pertencentes à mesma sociedade, são obrigatoriamente mais semelhantes do que imagina.

Aqui, seremos guiados pela ideia de que cada um de nós possui, sim, uma identidade própria e única. Ainda assim, aceitamos e concordamos com a ideia de que, ao longo de nossas vidas, a sociedade na qual estamos inseridos é influenciada por e influencia em nossas particularidades. Logo, não seríamos apenas uma “identidade-eu” ou apenas uma “identidade-nós”, e sim uma soma de ambas.

Voltando para a inserção de diferentes personagens que funcionam como representação de grupos minoritários e/ou marginalizados — seja no âmbito da “raça” e cor de pele, orientação sexual, aparência física e outros — em produtos de entretenimento, e somando a esse fator as ideias anteriormente discutidas, considero válido pensar que, assim como as esferas públicas e privadas andam de mãos dadas, a produção de narrativas e personagens que talvez não fossem “possíveis” há algumas décadas se tornam reais justamente por conta do crescimento da demanda do público por produtos que contemplem essas questões e que possibilitem certa ideia de pertencimento.

Respectivamente, Oliver e Connor (How to Get Away with Murder, 2014-Presente).

Assim, o fato de existir um Connor ou um Oliver em uma How to Get Away with Murder (2014-Presente) da vida, por exemplo, não significa que a ABC — emissora original desta ficção seriada — esteja tentando forçar seus espectadores a aceitarem que personagens com características como as desses dois existem, e sim que públicos reais e com semelhanças a algumas das características destes personagens existem e anseiam por representatividade. De quebra, enquanto aumentam-se taxas de engajamento e audiência, ainda que em filmes, séries e mais produtos fictícios, seja em um personagem principal, seja em um secundário, as características ali presentes, que, mais uma vez, são semelhantes a seres humanos reais, são exibidas a outros públicos que não aqueles ali representados e, ao menos em um mundo ideal, eles vão passando, com menor ou maior resistência, a aceitarem tais fatores como “normais” e existentes para além das telas de seus celulares, computadores e televisões.

Trazendo para o cotidiano de produtos nativos brasileiros, poderíamos discorrer, por exemplo, sobre várias novelas de grandes emissoras, como SBT e Globo. E, deixando de lado por um instante as inúmeras situações em que tais representações acabam sendo feitas com base em estereótipos um tanto quanto problemáticos e ofensivos — e não se engane, pois isso não acontece apenas no Brasil — , a lógica motivos de produção-consequências principais e secundárias é a mesma.

Sob esses pontos de vista, talvez seja importante, portanto, deixar de lado a acusação de falta de comprometimento e refletir sobre a importância dos impactos predominantemente positivos da mera existência de personagens e produtos de entretenimento que seguem lógicas parecidas.

Para alguns, na verdade, tudo o que foi aqui citado pode significar apenas que “agora Pabllo Vittar foi longe demais”. Para mim, no entanto, e, esperançosamente, também para você, se é esse o caso, espero que ela continue indo cada vez mais longe.

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Caio Amaral
Lindíssima disse tudo

Product Manager @ idwall / Mestre em Comunicação pela UFF