Criança Viada

Guilherme Cunha
Lindíssima disse tudo
4 min readJun 5, 2018

Acho que eu lembro da primeira vez que fui chamado de viado.

Devia ter alguns poucos anos, a puberdade já começando a florescer, uma confusão só dentro da minha cabeça. Eu era uma criança sensível, chorava a toa. A voz leve e afinada. No comum, sempre me sentia melhor tendo amigas do que amigos. O viado nem sempre aparecia diretamente a mim. Eu sabia como não ser o alvo, fui criando estratégias. Me apagando no meio da multidão, para não ser visto. Mas facilmente, eu deixava a fragilidade vazar, e me via chorando por voltar a ser, o viado.

Naquela época, eu nem me perguntava se eu poderia talvez ser mesmo o viado. Eu não queria ser viado. Ponto. Era minha responsabilidade não dar motivos para que as pessoas ao meu redor me chamassem assim. Tinha que fazer exatamente como eles estavam fazendo. Tinha que brincar das brincadeiras deles. O meu mundo era muito viado para ser compartilhado com os meus amiguinhos. Muitas vezes, a minha diversão melhor era sozinho, e hoje entendo por que era a minha maior forma de me sentir bem.

Quando criança, lembro que o viado da TV sempre era algum personagem caricato do Zorra Total feito para as pessoas rirem. Nos desenhos, eu não via nada. Na rua, não tenho uma memória. Hoje eu sei que estavam sim lá. Mas na minha cabeça, eu não tinha certeza se viado existia mesmo ou se era só uma forma feia de chamar as pessoas. E foi assim durante um bom tempo. Hoje eu me pergunto se, naquela época, como seria se viado eu realmente quisesse ser, sem me preocupar com nada?

De pouco em pouco, foram me podando. No decorrer da infância, cresci me estreitando nas confusões da vida. Eu não era fácil. Encucava com diversas coisas até. Mas sobre ser viado, poderia apenas parar e refletir: será que sim? Ou será que não? Mas o desconhecido sobre sexo, gênero e tudo mais, que naquele momento nem passava na cabeça daquela criança, apenas me assombrava como aquilo que hoje eu chamaria da mais pura especie de, homofobia.

Viado, em suas 5 letras de simples e leve tom, foi uma palavra que me marcou bastante ao longo de anos de construção e entendimento do que eu sou, ou melhor, do que eu quero ser. Se eu contar, já fui chamado de viado por falar mais fino, não gostar de jogar futebol, por mexer muito no cabelo, gostar de fazer tranças, ter um caderno mais arrumadinho, andar mais com meninas do que meninos, sentar com as pernas cruzadas, e continuaria aqui um bom tempo.

Entender minha sexualidade não foi uma tarefa fácil, e não aconteceu de um dia para o outro. Na verdade, foi um looongo processo dividido entre compreender a mim mesmo e mostrar ao mundo que eu já estava muito bem compreendido a mim mesmo. Um processo difícil, muitas vezes doloroso, mas que ainda flui e acontece.

Felizmente, hoje eu vejo que de certa forma conseguimos virar o jogo e trazer o ser viado para o nosso lado. A reapropriação de um termo que em origem deveria ser ofensivo, hoje muitas vezes é reconhecido como uma marca de identificação potente dentro do movimento LGBTQ+. E por mais que tenhamos a plena consciência que estamos ainda longe de viver em um país tolerante, uma inversão de valores desse tipo tem um extremo poder nessa caminhada, com ainda muitos passos para dar.

Nossa cabeça quando criança talvez não estivesse tão preparada para uma compreensão sobre ser ou não ser qualquer coisa. Mas hoje, além de ter plena e total certeza que não é a toa que ficamos por tanto tempo dentro do armário, eu vejo de forma muita clara esses cadeados que começaram desde cedo a serem colocados na porta desse meu armário. Esses, que aos poucos eu fui destrancando. Às vezes procurando uma chave perdida dentro de um grande palheiro, ou às vezes com uma só martelada bem forte.

Aos pais de hoje, deixo aqui um apelo para vocês: sejam generosos com as suas crianças. Ensinem, acima de tudo, que elas devem ser felizes independente de qualquer coisa. Não ensinem intolerância. Não reproduzam intolerância dentro de casa. Deixem elas voarem sem peso em suas asas. Não é a hora de se entender muita coisa, mas não as privem do mundo inteiro de possibilidades que elas podem ser. Agora o resto, fiquem tranquilos, o resto elas entendem beeem mais pra frente, muitas vezes sem nem precisar da ajuda de vocês rs.

Agora para quem já faz parte do time, é aquele ditado:

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