Do Twitter à Democracia! (será?)

Silvio Guerchon
Lindíssima disse tudo
5 min readJul 3, 2018

De acordo com o dicionário Aurélio, democracia tem os seguintes significados:

1- Governo em que o povo exerce a soberania, direta ou indiretamente.

2- Partido democrático.

3- O povo (em oposição à aristocracia).

Pois bem, na teoria esse sistema prezaria pela decisão da maioria, sem excluir a minoria, a fim de reduzir a desigualdade política e alcançar uma sociedade mais justa. Porém, dada realidade do número de habitantes de qualquer país do mundo, como o Brasil, que possui mais de 200 milhões de cidadãos, de qual modo a democracia funciona representando o povo em sua maioria?

Contextualizando a história do nosso país e o domínio europeu desde a sua “descoberta”, mesmo que da forma mais rasa, sabemos que os ideais de superioridade do homem cis, branco e hétero prospera vigorosamente até a atualidade e a democracia não garante nem de perto a representação política da maioria populacional. Basta dar uma procurada rápida na nossa lista de presidentes, por exemplo, para ficar bem claro o padrão que se repete, com no máximo duas exceções pelas quais eu me lembre: Nilo Peçanha, que rejeitava sua negritude através de discursos e maquiagens, tendo inclusive sua pele embranquecida em suas fotos; e recentemente Dilma Rousseff, afastada da função após sofrer um golpe impeachment durante o seu segundo mandato.

Independente do posicionamento político, pude presenciar diversos discursos sobre a última presidente fundamentados exclusivamente pela lógica (ou ilógica) machista, onde escutava comumente que sua retirada do poder foi consequência da incapacidade de uma mulher presidir um cargo de tamanha relevância, além de outros comentários pejorativos e especulações acerca de sua sexualidade por conta da ausência de um marido/homem.

Quando falamos da palavra minoria ao redor do tema, muitas vezes nos remetemos equivocadamente a grupos pequenos, menores socialmente. Alguns críticos reforçam a importância de proferirmos a palavra em sua forma composta: minoria política, pois essa é a grande prova da incongruência que existe no sistema democrático brasileiro. Mesmo sem uma pesquisa aplicada, acredito que se contabilizarmos o número de pessoas pertencentes a esses grupos (negros, índios, mulheres, LGBTs, PCDs, entre outros) e compararmos ao número de homens que não pertencem a eles, concluiremos que a representação do povo brasileiro em seus três poderes (legislativo, executivo e judiciário) está restrita a uma minoria populacional, ou seja, uma contradição à soberania do “povo” em sua prática.

Após anos e anos de submissão, as minorias políticas ganharam um forte aliado a partir dos anos 2000: a internet e o seu incalculável alcance demográfico, onde, principalmente através do uso popular de suas redes sociais, puderam se organizar e se identificar mais objetivamente. Desse modo, as questões e inquietações que ruminavam cada indivíduo começaram a ganhar exposição e os usuários dessas redes passaram a compartilhar vivências e informações sobre suas zonas de interesse, o que possibilitou e possibilita progressivamente as melhorias nas suas estruturações e reivindicações. Tal fato também exerce o peso contrário, onde os grupos privilegiados podem se elaborar da mesma forma, mas ainda assim, essa configuração permite que as lutas das classes inferiorizadas atinja um nível de destaque, fortalecimento e conscientização em proporções extremamente maiores quando comparadas há alguns anos atrás.

Sem me aprofundar na mediação entre os pontos positivos e negativos da internet e sua popularização no Brasil e no mundo, já que isso provavelmente geraria um debate infinito e subjetivo, um caso ocorrido no último sábado me fez refletir sobre a magnitude do Twitter como uma maneira de contribuir para o exercício da democracia. O caso trata-se de um tweet postado pelo youtuber Júlio Cocielo sobre Kylian Mbappé, um jogador de futebol negro, da França, onde diz: “Mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein”, deletado alguns minutos depois. Porém, usuários da rede social já haviam salvo o comentário e encheram o digital influencer de críticas sobre o racismo presente em sua frase.

Após a repercussão negativa sobre o tweet, Cocielo se defendeu com a seguinte declaração: “Apaguei porque meu negócio não é ofender. Não citei nada além da velocidade dele devido ao lance do jogo, não quero treta, só deixei pra lá porque não era esse o sentido e não quero levar isso além. É isso. Não quero que confundam as coisas”. Entretanto, os internautas resgataram inúmeros tweets antigos do youtuber com discursos explicitamente racistas, aumentando a visibilidade e discussão a respeito do acontecimento.

A polêmica potencializou sua significância e fez com que outras figuras conhecidas na mídia se posicionassem repudiando o caso, além de grandes marcas como a Coca-Cola, Adidas, Itaú, McDonald’s e Submarino declararem a suspensão de suas parcerias com o “humorista”. Por situações como esta, redes sociais como o Twitter podem se transfigurar em um poderoso instrumento de denúncia pública acerca do preconceito/CRIME propagado naturalmente durante centenas de anos sobre as minorias políticas. Talvez, e muito provavelmente, sem a difusão do empoderamento negro e da organização de seus movimentos pela internet, o caso ficaria silenciado ou teria sido encerrado após a declaração de defesa do youtuber, como infelizmente ainda presenciamos no dia a dia.

O que aconteceu com o Júlio Cocielo é apenas um triste demonstrativo do que se perpetua e se perpetuará por um (mau) tempo indeterminado na nossa e em outras sociedades colonizadas e doutrinadas pelos ideais obsoletos eurocêntricos, junto de suas presunçosas teses eugenistas e falocêntricas. Em contrapartida, muitas outras ocorrências similares estão sendo expostas e debatidas fora das bolhas “intelectuais” e inacessíveis, expandido sua consciência para outras camadas desabastecidas de informações sobre a gravidade desses discursos ou atitudes.

Júlio Cocielo, Biel, Danilo Gentili, Dado Dolabella, Douglas Sampaio, Yuri Fernandes, Silvio Santos, Ratinho, entre muitos e muitos outros nomes que vêm à minha mente. São inúmeros os episódios e relatos de agressões físicas e/ou psicológicas, interseccionadas com o racismo, machismo, lgbtfobia, intolerância religiosa, ridicularização de corpos, de deficiências, de sentimentos, de aparências, de interesses e por aí vai…

Se a democracia realmente pode existir, eu não sei. Mas não podemos deixar que ela, de forma cínica, vele toda sua hipocrisia e alimente apenas um grupo minoritário com um poder que nunca lhe foi cedido, e sim imposto.

Até quando nos acomodaremos como minorias?

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