Intolerância aos intolerantes

Vic Freitas
Lindíssima disse tudo
4 min readJun 4, 2018

Se teve algum ano notável para os grupos de ódio de todo o mundo, esse ano foi 2017. A eleição de Donald Trump foi um fator decisivo nesse fenômeno, fazendo com que esses coletivos se sentissem subitamente validados e — acima de tudo — encorajados a compartilharem seus ideais que são no mínimo conservadores e, mais frequentemente, descaradamente racistas. Todo esse apoio, obviamente, não é despropositado. Durante seu governo, o tapete de “seja bem-vindo” esteve estendido para qualquer representante do nacionalismo branco e da intolerância, e isso se aplica também às pessoas que trabalham com ele. Resultado: o registro de crimes de ódio cresceu em 20% no último ano.

Com o aumento desses grupos veio junto o questionamento: como uma sociedade que quer ser reconhecida por princípios de tolerância deve tratar os intolerantes? A liberdade de expressão não deveria ser protegida a qualquer custo? Qual o limite do discurso intolerante dentro de uma sociedade presumidamente liberal?

Christopher Cantwell antes e depois de descobrir que ia pra prisão por crimes cometidos durante marcha de supremacistas brancos em Charlottesville.

Se considerarmos que os indivíduos e suas visões de mundo herdam uma natureza multidimensional do próprio convívio em sociedade e que, como diz Eric Barendt em seu livro “Freedom of Speech”; “a liberdade de expressão é integralmente conectada com outros valores”, essas questões se aprofundam imensamente. E elas não são fáceis de se responder, embora muitos esforços já tenham sido feitos nesse sentido. Em 1945 o filósofo austríaco Karl Popper escreveu o livro “A Sociedade Aberta e seus Inimigos” onde ele descreve o Paradoxo da Tolerância:

Tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos ilimitada tolerância mesmo aos intolerantes, se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância, com eles.

Não é curioso como o argumento-chave de todos aqueles que propagam discursos de ódio acionam o direito de liberdade de expressão para se validarem? Acontece que quando você tolera ideias que ameaçam existência de outras pessoas — seja no sentido racial, religioso ou de gênero - você não está apenas tolerando. Você é parte do problema.

Nazista leva um soco de manifestante. Karl Popper ficaria orgulhoso.

O autor não sugere, entretanto, que toda e qualquer visão de mundo questionável deve ser suprimida, violentamente ou não. Pelo contrário, Popper incentiva que todas as diferenças sejam resolvidas na base do diálogo racional e da argumentação, incluindo ainda a opinião pública no debate. E se se essa visão não representar nenhuma ameaça para o ideal tolerante de uma sociedade, o conselho dele é claro: deixa pra lá. Terraplanistas podem respirar aliviados.

Claro, nem tudo pode ser resolvido na base da conversa. E Popper reconhece isso também:

“ Mas devemos nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, mas comecemos por denunciar todos os argumentos; eles podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los responder argumentos com punhos e pistolas. Devemos, então, nos reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante.

Mas então, se essa regra vale para os intolerantes, quem decide o que é intolerância? Há quem diga que somente através da exposição de ideias divergentes e do diálogo coletivo dentro de uma sociedade é que se chega à verdade. John Stuart Mill é uma dessas pessoas. Segundo ele “ Todo o silenciar de uma discussão constitui uma pressuposição de infalibilidade.”, ou seja, a não ser que a humanidade chegue num patamar de juízo irretocável, a censura não é uma prática aceitável. Mesmo que divergindo tanto do pensamento de Karl Popper, Mills dá uma solução parecida. O que ele chama de “princípio do dano” nada mais é do que a afirmação do direito de intervir na liberdade de expressão de alguém no caso de que essa liberdade seja nociva à existência de terceiros.

A natureza paradoxal da liberdade de expressão vem sendo discutida há décadas e seria impossível, principalmente em um texto tão curto, sequer arranhar a superfície desse vasto tema. É importante, no entanto, refletirmos sobre nossa posição dentro desse debate, assim como revermos nossas próprias estimadas convicções. Esse exercício, apesar de exaustivo, é o primeiro passo para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.

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