Itaipava, Saloon Line e a memória brasileira

Nerito Caldeira
Lindíssima disse tudo
4 min readJul 3, 2018

De bonecas loiras com olhos claros dominando o mercado e tornando-se referência de beleza à propagandas de produtos para cabelo exibindo apenas cabelos lisos e produtos especializados em alisamento, as mensagens transmitidas nas entrelinhas do marketing solidificam estereótipos sobre a população. Vemos supermodelos servindo cerveja em botecos nas propagandas de cerveja, pessoas brancas de cabelo liso em comerciais de shampoo, entre tantos outros exemplos.

Apesar de estarem com menos tempo de tela na TV aberta atualmente, as propagandas de cerveja são uma constante na programação de lazer brasileira. As mulheres vestem poucas roupas, ganham adjetivos impessoais para despersonificá-las e a sexualização torna-se explícita através dos focos incoerentes em suas curvas e peitos. O comercial a seguir é intitulado “Vai e vem”, produzido pela agência Y&R, estrelando uma mulher com o codinome “Verão” servindo cervejas num quiosque de beira de praia.

Segundo dados da Datafolha, esta campanha baseada no “humor” de homem hétero tradicional, feita por um elenco que se encaixa nessa classificação, colocou a Itaipava entre as marcas preferidas dos consumidores em relação às demais marcas com propagandas televisionadas. Através de uma reportagem retirada do site Administradores.com.br (2015) encontrei uma declaração de Eliana Cassandre, gerente de propaganda do Grupo Petrópolis, responsáveis pela cerveja Itaipava: “ Toda a campanha é centrada no bom humor, e ficamos muito felizes ao saber que voltamos ao ranking das marcas mais lembradas em propagandas de TV. O consumidor entendeu nossa campanha e se diverte com ela. Estar na memória dos consumidores reforça que estamos no caminho certo.”

Cady (protagonista do filme Garotas Malvadas) representando as pessoas de bom senso diante da situação.

Esse pronunciamento é controverso de tantas maneiras que é difícil escolher um ponto de partida. Porém, um dos principais conhecimentos fornecidos à minha formação pessoal pela universidade foi que estar marcado na memória/história nem sempre é algo bom. Grandes chacotas como a derrota da Alemanha em solo russo durante a Segunda Guerra Mundial ficaram marcadas na memória, assim como a nova música genérica do Maroon 5 (pode inserir qualquer nome aqui, porque todas são iguais). Entretanto, o ponto mais importante desta declaração é o fato de a representante da marca estar consentindo e exaltando um material de extremo desserviço para um público oprimido na qual a própria se enquadra.

Em contrapartida, a Saloon Line vem reformulando sua abordagem através de uma proposta inovadora, focando na inclusão, buscando agregar representatividade em seus produtos. Com o lema ‘Transforme-se em você”, a empresa de cosméticos lançou uma campanha com diversos produtores de conteúdo para o Youtube e sua embaixadora, a cantora Ludmilla.

Ludmilla no lançamento da campanha #ToDeCacho

Com o nome #ToDeCacho, a proposta é alimentar as redes sociais da marca com informações sobre o cuidado de cabelos cacheados vindo de pessoas que representam um público que até então era ignorado pela indústria.

No vídeo acima, que serviu como o pontapé inicial da promoção da campanha através do Youtube, Ludmilla exibe seus belíssimos cachos com muita confiança, entonando um single empoderador para a linha de cosméticos. Em seguida, acompanhamos a rotina de uma jovem negra em sua rotina, cantarolando o jingle #ToDeCacho e sendo surpreendida pela cantora. Este material reforça o apoio à transição capilar da jovem e de todas as outras mulheres que estão enfrentando, ou pensando em iniciar, o longo processo de transição capilar.

Há uma diferença de 2 anos entre a campanha da Itaipava (veiculada em 2015) e a da Saloon Line (lançada em 2017), que, inclusive, também ignorava a visão de representatividade de minorias como estímulo de consumo naquela época. Neste meio tempo a sociedade brasileira continuou com os mesmos defeitos e problemas, porém as empresas começaram a perceber que apesar de o brasileiro ter memória curta, alguns estigmas são grandes demais para serem deixados para trás.

Segundo Kathryn Woodward em sua obra Identidade e Diferença (2000), a representatividade, ou a falta dela, interfere diretamente na construção de vínculo entre o consumidor e os produtos midiáticos, levando a protestos e disputas em diferentes mídias por falta de associação com o que nos é apresentado.

“Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. Por exemplo, a narrativa das telenovelas e a semiótica da publicidade ajudam a construir certas identidades de gênero. Em momentos particulares, as promoções de marketing podem construir novas identidades como, por exemplo, o “novo homem” das décadas de 1980 e de 1990, identidades das quais podemos nos apropriar e que podemos reconstruir para nosso uso” (WOODWARD, 2000, p. 17–18).

Fazendo um paralelo com a citação acima, ouso dizer que as pessoas que se sentem contempladas pelas propagandas estereotipadas de cerveja não são as mesmas que sofrem com os altos índices de violência doméstica e sexual, reforçando a necessidade de uma reconstrução da imagem da mulher. Enquanto a #ToDeCachos empodera o movimento da transição capilar, afirmando que somos bonitos naturalmente, independente do que os padrões de beleza impõem, tornando a apropriação nativa no conteúdo midiático.

Enquanto as propagandas de cerveja “vem e vão”, o impacto que campanhas conscientes como a da Saloon Line causam na vida daqueles que precisam gritar para terem voz, jamais será esquecido.

A cantora Beyoncé durante sua apresentação história no Super Bowl Halftime Show.

Texto para a disciplina Meios de Comunicação e Vida Democrática.
Professora: Seane Melo.
Universidade Federal Fluminense, 2018/1.

--

--