Al-Jazeera, Al-Qaeda, Alckmin — Por uma etnificação da esfera pública.

Bruno Najjar
Lindíssima disse tudo
6 min readApr 21, 2018

Nas últimas décadas da nossa tão querida “Democracia racial”, os descendentes de Sírio-Libaneses, Palestinos, Marroquinos e Egípcios, após muito esforço e negociação com o establishment brasileiro, passaram a se destacar tanto na política quanto nos negócios, nas artes e comunicação. Mais de dez por cento do congresso nacional, um bom número de cargos de governador e a cadeira da presidência da república, assim como vários prêmios Jabuti e a chefia do departamento de jornalismo da maior emissora de televisão do país estão hoje em posse de filhos ou netos de imigrantes desses quatro países. Diferente dos casos dos Estados Unidos e da Europa, não há falta de “representatividade árabe” (para pegar emprestado um termo dos movimentos identitários) na esfera pública brasileira.

Bafora Temer

Começando com os ataques de 11 de setembro, mas se intensificando com o prolongamento da Guerra da Síria e o influxo (muito pequeno, para falar a verdade) de refugiados, de maioria muçulmana, chegados ao país graças ao conflito — a figura do Árabe no Brasil começa a ser rediscutida, principalmente por atos hostis de setores mais ligados à direita conservadora. O exemplo mais notório talvez seja a passeata ocorrida em São Paulo no ano passado, onde manifestantes carregavam cartazes contra a “islamização” que a nova lei de imigração traria ao país. Os casos de manifestações abertamente anti-refugiados ou anti-islam, no entanto, não param de crescer e ganhar respaldo em políticos amplamente conhecidos, como Jair Bolsonaro e Magno Malta. O último aconteceu no último dia 19, quando a senadora Ana Amélia (PP-RS), comentou no Twitter um vídeo veiculado na Al-Jazeera em que Gleisi Hoffmann, presidente nacional do PT, pede apoio ao mundo árabe no caso Lula:

“que essa exortação não tenha sido para convocar o Exército Islâmico a vir ao Brasil proteger o PT!”

Gleisi Hoffmann fez o mesmo apelo em emissoras da Espanha, Inglaterra e Estados Unidos, mas parece que a única vez que sua mensagem causou furor foi ao ser veiculada em uma emissora Catári e legendada em Árabe.

Não fico nem um pouco surpreso com o comportamento da senadora, tampouco acho que isso é um “sintoma dos tempos sombrios em que vivemos”. Lógico que, como escrevi ateriromente, o caso de manifestações desse tipo cresceu graças ao contexto mundial, mas o pensamento por trás desses atos não é nem um pouco recente. Este tweet relacionando a Al-Jazeera com terrorismo por uma questão meramente linguística é só mais um capítulo da longa história de amor entre a manutenção do eurocentrismo como status quo e o combate à língua árabe no Brasil.

Esse discurso “arabofóbico” vem sendo difundido desde o descobrimento do Brasil, trazido pelos colonizadores que desembarcaram cheios de euforia com a recente conquista de Al-Andalus (لأندلس) e a expulsão dos “invasores mouros”, acontecimentos importantíssimos para a consolidação dos estados que conhecemos hoje como Espanha e Portugal, além da própria colonização da América Latina. A partir daí, o ódio à “civilização islâmica” Huntingtoniana se manteve sempre presente na mente e no discurso da classe dominante do país. A língua árabe, símbolo máximo dessa suposta civilização, passou a ser o grande pesadelo da elite herdeira dos colonizadores após a independência. Aqui estão alguns exemplos históricos:

  • Leis da época imperial que proibiam completamente o uso do árabe, principalmente na Bahía, por ser uma ameaça à escravidão enquanto instituição. Ela permitia a comunicação entre escravos de diferentes etnias que tinham o Islam como religião e foi decisiva na organização da Revolta dos Malês, ocorrida em 1835.
  • Longos discursos parlamentares e editoriais de jornais da República Velha que pediam medidas urgentes para conter a proliferação da “fala enrolada” que crescia nas ruas das grandes metrópoles brasileiras. Imigrantes levantinos, fossem eles muçulmanos ou cristãos, apresentavam uma grave ameaça ao projeto em vigor de europeização e embranquecimento do país.
  • Dirigentes do estado novo que ativamente perseguiram (e venceram) instituições pertencentes a comunidades diaspóricas que tentavam ensinar suas línguas originais — entre elas, o árabe — a seus filhos e netos nascidos no Brasil.
  • A catalogação de cidadãos brasileiros de ascendência árabe como “estrangeiros” nas listas de suspeitos de subversão mantidas pelo DOI-Codi durante os anos de chumbo.

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Mas como pode uma nação ter uma cultura de meio milênio de fobia ao “oriente próximo” e, ao mesmo tempo, manter tantos “turcos” em posições de poder e destaque? A resposta está no bom e velho colorismo. Em um país tão miscigenado quanto o Brasil, a categoria de “branco” não está ligada a uma origem europeia pura, mas ao distanciamento do fenótipo subsaariano e à aproximação do cristianismo. Em “A invenção da Brasilidade”, o brasialianista Jeffrey Lesser explica como algumas comunidades diaspóricas não-europeias, principalmente os árabes e os japoneses, negociaram a aquisição de suas “branquitudes”. Apesar de serem “orientais”, os imigrantes árabes eram fenotipicamente mais parecidos com os europeus do que com os ex-escravos, e a esmagadora maioria era cristã.

Mesmo com as questões de cor de pele e religião resolvidas, foi necessária também adoção uma forma de sociabilidade cem por cento brasileira e completamente ligada ao mito de democracia racial, nomeada por Lesser de “hífen oculto”. Esse “hífen oculto” significa a abolição do pertencimento étnico na esfera pública, confinando-o somente à esfera privada. Esses imigrantes e suas família podem ser “árabo-brasileiros” dentro de casa, desde que comportem como — e tratem de assuntos estritamente — brasileiros, ponto final, fora dela. É desnecessário dizer que o termo “Brasileiro” nessa frase também mantém um hífen oculto: “euro-”. A temida língua árabe foi então abolida das ruas e os filhos e netos de seus falantes passaram a ser tolerados em posições influentes, as mesmas geralmente negadas a pretos e pardos. Maluf, Haddad e Feghali passaram a significar apenas sobrenomes estranhos de escrever. Assim como não fiquei surpreso com a atitude da senadora do Rio Grande do Sul, a falta de manifestações contrárias vindas de grandes figuras de destaque da comunidade árabe não-muçulmana no Brasil tampouco me surpreendeu.

Esses anos todos longe da condição de mouro fizeram com que ela realmente cortasse todos os laços públicos com sua região de origem, com exceção dos breves momentos que ajudam a alavancar carreiras individuais. O aparecimento dos refugiados sírios e a crescente onda de paranoia em relação aos “orientais” no Brasil está apenas ajudando a explicitar o quanto essa comunidade de árabes já estabelecida tem medo de se associar com esse “Oriente” que o ISIS e os refugiados representam — e que ela própria já fez parte.

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Nasci em uma família Libanesa. Cresci comendo za’tar e ouvindo Fairouz, Umm Kulthum, Farid El Atrache, Asmahan e as conversas de meu avô com os amigos. Fui nascido e criado no Brasil, não sou fluente em árabe e não frequento a Igreja Ortodoxa Antioquina em que fui batizado, mas o tal hífen sempre me acompanha. O hífen que me refiro não é apenas o tipográfico presente na palavra “árabo-brasileiro”, mas a ideia de ligação. Eu estou permanente ligado à língua árabe mesmo não a dominando. Estou permanente ligado a seus falantes, mesmo possuindo um passaporte diferente. Seus sons são os sons da minha infância, são os sons que fazem parte da minha identidade, mesmo que eu não saiba o que eles signifiquem. Relacionar a língua árabe e seus falantes ao terrorismo é um completo desrespeito a mim, à minha família e a todos os brasileiros que compartilham origens similares às nossas.

No documento de imigração do meu avô foi tirado o “Al” do nome da família. Uma coincidência engraçada.

É dever de todos minimamente preocupados com direitos humanos combater a islamofobia no país, mas acredito que os árabo-brasileiros não-muçulmanos possuem um lugar especial nessa luta. Devido à ligação que possuímos com o Oriente Médio e a maior facilidade que temos de navegar no esquema da “democracia racial”, devemos ocupar um espaço na luta contra islamofobia análogo àquele que os previamente conhecido como mulatos ocupam no movimento negro. Para isso ser possível, no entanto, precisamos parar de tratar os muçulmanos como “eles” e passar a tratá-los como “nós”.

Já está na hora de pararmos de fingir que a Islamofobia não é também um ataque às nossas identidades e memórias afetivas. Precisamos vestir nossos hífens orgulhosamente, mesmo que isso também nos faça alvo de ataques.

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