O Mecanismo — de manipulação

Yan Lahud
Lindíssima disse tudo
4 min readJul 3, 2018

A experiência democrática é incompatível com a difusão de mentiras e de manipulações grosseiras da realidade nos meios de comunicação, sem qualquer possibilidade de defesa ou do rápido e efetivo direito de resposta. A série “O Mecanismo”, do cineasta José Padilha, na Netflix, é mais um exemplo que aponta para a urgência de uma discussão séria, profunda e transparente sobre a democratização e a regulação dos meios de comunicação, no Brasil.

Com um aporte publicitário poucas vezes visto em produções nacionais, ocupando a contracapa das revistas e grande espaço nos jornais de maior circulação, a série se presta a fazer um ataque político, maniqueísta e desqualificado contra os governos democráticos dos últimos anos, notadamente os do PT. As fontes de financiamento desta campanha e série milionária permanecem desconhecidas. Caracteriza-se, ainda, como uma tentativa de desconstruir, no país e internacionalmente, a partir de manipulações grosseiras e ideologizadas, a imagem de dois ex-presidentes, Lula e Dilma, em uma plataforma de distribuição global de conteúdos.

Dilmãe desolada assistindo netflix

Ainda que ficcional, a série seria inadequada. Ao se autointitular como “baseada em fatos reais”, é inaceitável, porque procura reconstruir de forma nefasta uma narrativa histórica, contribuindo para a aprofundamento da intolerância e do ódio, em nossa sociedade. Se tal manipulação política grosseira ocorresse em uma campanha eleitoral, certamente, os órgãos de controle, como os tribunais eleitorais, por exemplo, assegurariam o direito de resposta aos prejudicados. Agora, como ficam os direitos de defesa e ao contraditório e a reparação de danos contra calúnias e difamações, neste caso?

Até mesmo o grau de truculência e o ataque pessoal contra a presidenta Dilma, feitos pelo referido cineasta em resposta a nota lançada pela presidenta, que denuncia as distorções da realidade presentes em “O Mecanismo”, são incompatíveis com o ambiente democrático, que pressupõe a liberdade de pensamentos e de opiniões, mas também o respeito e a convivência com a diferença. Como nenhum crítico importante se apresentou publicamente para defender a série, o diretor tenta justificar o injustificável a partir de novos e rebaixados ataques.

Não podemos deixar de mencionar, no contexto da discussão da democratização e da regulação dos meios, a recente fraude da Cambridge Analytica, que obteve de forma irregular dados sigilosos de cerca 50 milhões de usuários do Facebook. A partir desses dados, a empresa atuou para moldar comportamentos, influenciar decisões e prever a escolha dos eleitores, atuando a favor da campanha de Donald Trump, na corrida presidencial norte-americana de 2016, além do Brexit e várias outras campanhas eleitorais relevantes.

Ao que consta, essa mesma empresa pretendia se instalar no Brasil para atuar na campanha presidencial deste ano, a favor do PSDB, e, também, em outros três estados, em mais uma ação de manipulação potencial do processo eleitoral.

Vivemos, ainda, um ambiente de ampla circulação de notícias falsas, as chamadas fake news, que agridem e atacam reputações. Pesquisa DataFolha, divulgada no mês de maio/2018, apontou que 60% dos moradores da cidade do Rio de Janeiro receberam fake news a respeito da vereadora Marielle Franco, assassinada de forma covarde no dia 14 de março.

O mais impactante é que 10% das pessoas que receberam as notícias falsas acreditaram que elas eram verdadeiras e outros 15% não souberam distinguir se as fake news sobre Marielle eram falsas ou verdadeiras. Ficou provado, ainda, que portais difamatórios, ligados a grupos de extrema direita e de inclinações fascistas, atuaram coordenadamente nesse processo difamatório, covarde e criminoso.

Além disso, essa grave manipulação cinematográfica, vem dentro de um cenário de escalada do ódio, da intolerância e do aumento dos casos de agressões, igualmente inaceitáveis, para a nossa democracia. É inegável que as fake news, a violação de dados pessoais na internet, o jornalismo de guerra e, agora, a produção cinematográfica de guerra têm contribuído e muito para fomentar esse ambiente, que pode ter desdobramentos imprevisíveis para a sociedade como um todo.

A caravana de Lula pelo sul do país foi vítima de agressões e intolerâncias inadmissíveis, inclusive com ataques físicos, como a arremesso de pedras contra o ônibus do presidente. Onde estão as lideranças dos campos ditos como social democrático e democrático, que não condenaram ou sequer se manifestaram a respeito dos ataques e agressões físicas contra militantes e a caravana de Lula?

Em 2010, a grande mídia tratou o chamado caso da “bolinha de papel”, que atingiu o então candidato José Serra, como um caso gravíssimo de ataque contra a democracia. Agora, quando Lula é alvo de pedradas e agressões físicas contamos com o silêncio, com a cumplicidade e uma quase celebração velada da mídia tradicional sobre o caso.

Volto a defender que a internet, a imprensa e a produção cultural devem ser ambientes livres de qualquer tipo de censura. Entretanto, não podemos deixar de apontar para a urgência de uma normativa que assegure a realização de uma eleição livre e equilibrada.

A democracia só será fortalecida com a ampliação e o respeito integral a toda e qualquer corrente política e a pluralidade de pensamentos e de opiniões, em um ambiente em que sejam assegurados os direitos de defesa, de resposta e ao contraditório. A Netflix deve providências imediatas contra esta tentativa rebaixada de manipulação política. Mais que isso, a Netflix deve um pedido de desculpas ao povo brasileiro.

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