Giulia F
Lindíssima disse tudo
3 min readJun 5, 2018

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Seu fave é problemático — As disputas por autoridade na problematização

Você é uma celebridade da internet. Sua base de fãs não para de crescer e você respira aliviado por não ter se envolvido em nenhum escândalo até agora. De repente, uma comunidade de fãs rivais desenterra algo muito estúpido que você falou aos 12 anos de idade. Seus assessores não foram rápidos o suficiente para apagar os tweets antigos e agora você foi parar em listas de artistas problemáticos, virando tema do textão mais compartilhado do momento.

Em teoria, a “call-out culture” ou cultura da problematização é praticamente perfeita: permite que comportamentos discriminatórios venham a tona quando normalmente passariam despercebidos e resulta em vergonha pública suficiente para mudar o pensamento dos que são chamados a atenção. O internauta que faz o nobre papel de problematizador não possui segundas intenções, além do senso de justiça social e o prazer de incentivar o outro a aprender com seus erros.

Na prática, principalmente nas práticas de fandoms e comunidades de fãs, é muito diferente. Chamar atenção de alguém por atitudes questionáveis ganhou significados complexos nos ajudam a entender novas formas de validação de autoridades.

O princípio é bem simples: vasculhar quilômetros e mais quilômetros de tweets, pastagens e fotos em redes sociais de seus desafetos artísticos em busca de qualquer sinal de linguagem pejorativa ou conteúdo insensível que celebridades e assessores descuidados deixaram escapar. Declarações grosseiras de anos atrás ressurgem em listas que provam o quão problemático é aquele artista favorito tão amado (e seus fãs horríveis por ainda gostarem dele) e viram armas nas disputas de autenticidade que alimentam as rivalidades entre fãs.

Logicamente, figuras públicas devem ser responsabilizadas por seus atos. Identificar e compartilhar rupturas ofensivas de performance é essencial para que uma eventual retratação ocorra, coisa que eram bem mais rara antes das redes sociais.

O problema é quando o ato de chamar atenção para uma questão vira performance de superioridade e pureza política, sem real consideração com as consequências das micro e macro agressões ou interesse na possibilidade de pessoas aprendendo com seus erros anteriores. Ataques a celebridade e seus fãs por algo dito anos atrás tornou-se tão essencial para o processo de legitimação de um artista que não é raro encontrar por aí interações entre fãs rivais que consistem em diálogos em loop infinito, onde um tenta provar que tem a moral mais perfeita que o outro, distribuindo provas dos desvios de caráter de artistas sem reparar que os dois rivais já cometeram e se desculparam pelos mesmos erros. Aí já dá para perceber que os envolvidos pouco se importam com falas sexistas ou se alguém não tem as mesmas ideias de 10 anos atrás, o importante é sair validado da guerra da problematização.

Usar a ideia de autoridade para legitimar a superioridade de um determinado pensamento não é uma prática exclusiva a jovens fãs querendo derrubar os rivais de seus ídolos online, pelo contrário, casos semelhante também ocorrem no jornalismo e na política, locais tipicamente menos acessíveis ao público jovem e reconhecidos por seu capital cultural tradicional. Porém, é ainda mais perturbador que em um ambiente promovido como socialmente inclusivo, uma parte considerável do ativismo ainda esteja apoiado numa falsa noção de progressividade onde a habilidade de aprender com os erros cometidos é descartada em favor da velha autoridade dominadora.

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