Sobre a falsa natureza social

Por mais que seja difícil nos livrarmos dessa ilusão da natureza social, saiba que tudo, pode sim, ser tudo.

Lindíssima disse tudo
4 min readApr 30, 2018

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Durante toda a nossa trajetória de vida, nós somos bombardeados de ideias e concepções que nos orientam, de uma maneira muitas vezes despercebida, sobre a forma que devemos nos portar diante da sociedade. A maneira que devemos nos vestir, com quem devemos nos relacionar, grupos e rótulos nos quais devemos nos encaixar, quando e de que forma nós devemos falar e o mais importante, como não devemos questionar. São ideias que ultrapassam gerações, legitimam regras e por mais que passem por lapidações ao longo do tempo, continuam sendo (ilusoriamente) as raízes ou princípios da forma correta de se viver. Mas você já parou para pensar porque certas coisas são como elas são? Será que, como muitos dizem, sempre foi e sempre será assim?

Existem diversas instituições que através de potentes poderes simbólicos conseguem criar dispositivos capazes de deter e impor o significado de diferentes signos que são essenciais em nossa construção identitária. Para simplificar, imagine a igreja, uma grande e poderosa instituição que durante milhares de anos e até hoje consegue influenciar não só aqueles que a seguem e são devotos, mas estar dentro das estruturas legislativas de um estado democrático que não reconhece, por exemplo, um modelo de família diferente do heteronormativo tradicional. Agora, imagine a Rede Globo, também uma poderosa instituição midiática, detentora de um grande poder simbólico e dona da maior parte da audiência televisiva brasileira, que em suas novelas durante muito tempo trouxe narrativas, seguindo o mesmo exemplo anterior, com referências de famílias que muito dificilmente se distanciavam do modelo de família tradicional brasileira que nós bem conhecemos.

Essas grandes instituições conseguem introjetar tão forte os significados produzidos por elas que acabamos, muitas vezes, caindo em falsas convicções de que as coisas são naturais e sempre foram assim. Vivemos em uma estrutura social que muitas vezes nos força a reproduzir certas ideias de forma despercebida e como mero ato de sobrevivência. Durante muito tempo, não questionamos o por que de estarmos sempre seguindo certos padrões ou o motivo de certos grupos sociais estarem sempre sendo estigmatizados ou a necessidade de nos conter quando, na verdade, só gostaríamos de ser aquilo que, gostaríamos de ser. Até que um dia, a gente abre os olhos e percebe que o que tanto parecia ser fruto da nossa natureza humana, na verdade, é pura construção social.

O que eu quero dizer com isso? Por mais que seja difícil nos livrarmos dessa ilusão da natureza social, saiba que tudo, pode sim, ser tudo. O teórico russo Bakhtin já dizia que o signo é ideológico, justamente por abrir espaço para uma arena de disputas entre um, dois ou mil significados. Para ficar mais claro, pense na ideia de “criança”. Quando pensamos em uma criança hoje em dia, o que vem a nossa cabeça são aspectos como fragilidade, um ser que deve ser cuidado, protegido para não desenvolver traumas, certo? Agora se perguntarmos para um cidadão do século XIX sobre o significado de “criança” para ele, teremos uma resposta bem diferente, já que nessa época não se havia essa distinção entre os sujeitos criança, adolescente ou adulto de forma tão marcante como vivemos hoje.

Quando falamos também sobre discussão de gênero, outro exemplo, podemos perceber o quanto essa disputa por significados é mais do que presente. Só vivemos através de um binarismo generalista que divide a classificação de gênero em apenas duas formas distintas (masculino e feminino, homem e mulher) por que a partir de algum momento estipulou-se de forma totalmente arbitrária por alguém, ou alguns, que deveríamos nos dividir dessa forma. E partir do momento que um sujeito não se identifica com tal classificação e escolhe se classificar fora do padrão social binário já imposto, surge uma discriminação capaz de deslegitimar esse sujeito em prol daquilo que (supostamente) seria da natureza humana. Acho que já ficou claro que as coisas nem sempre foram como elas são, e nem continuarão sendo.

Entender que a luta discursiva não é ambivalente, ou seja, carrega consigo diferentes valores e significados, é um passo muito grande na busca de uma sociedade livre de preconceitos. A natureza social nunca existiu, as relações, hábitos, comportamentos e identidades mais aceitas na sociedade sempre foram e continuarão sendo pautadas por aqueles que mais detém o poder de reproduzir os significados que forem mais interessantes para essas pessoas ou instituições. Mas ter em mente que essa arbitrariedade também está em nossas mãos já é um grande ato de resistência.

Nada deve parecer natural ou impossível de mudar.

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