“A Great Day in Hollywood” por Kwaku Alston (2018)

Um grande dia em Hollywood?

Matheus Bibiano
Lindíssima disse tudo
4 min readJul 3, 2018

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Durante a exibição do BET Awards, a Netflix lançou um vídeo-manifesto em ode aos profissionais negros que compõem o catálogo online do serviço de streaming. Narrado por Caleb McLaughlin (Stranger Things), o video “Um Grande Dia em Hollywood” traz 47 atores e atrizes, produtores/as e diretores/as negros, juntos em celebração de sua importância na história do audiovisual norte-americano.

O manifesto inaugura a campanha Black Strong Lead — administrada por executivos negros da empresa. De acordo com Maya Watson, diretora da divisão de Branding e Editorial da Netflix, esta é uma iniciativa que pretende ter um “foco contínuo e intencional para falar autenticamente com o público negro”. A foto foi remake da famosa fotografia de Art Kane, batizada de “A Great Day In Harlem”, de 1958, que reuniu 57 músicos de Jazz na mesma ocasião.

Este é um novo dia, construído a partir do solo, trazido à tona por lendas. Um dia para nossa geração contemplar experiências nunca contadas da nossa negritude. Representando uma amplitude infinita de identidades. interpretando Reis e Rainhas de nossas vizinhanças, enfrentando forças maiores que a vida, tentando virar nosso mundo de pernas para o ar. Nós nos mantemos de pé em qualquer palco ou tela (…). Este não é um momento. É um movimento. Nós somos lideranças negras fortes. Hoje é um Grande Dia em Hollywood”.

O vídeo foi lançado apenas dois dias após a Netflix ter demitido seu chefe de comunicação Jonathan Friedland por proferir aquela palavrinha com N proibida — “Uso descritivo da palavra N em pelo menos duas ocasiões no trabalho”.

A iniciativa do vídeo nos apresenta um exemplo de um movimento divergente na produção televisiva americana. Historicamente, na televisão americana, o corpo negro é muito presente nos telejornais, talk shows, reality shows e nos esportes, sempre representado pejorativamente como quem gera os problemas ou como alguém cujo corpo é utilizado apenas em sua performance física. Os profissionais presentes na ocasião são produtores, diretores e atores que compõem os dramas, as comédias, documentários e afins, todos gêneros televisivos nos quais comumente pessoas negras não estão presentes.

Não gostaria de afirmar aqui, sem qualquer contradição, que o corpo negro nunca esteve presente nas produções televisivas. O que quero dizer é que atualmente existe uma série de iniciativas que propiciam e exigem a visibilidade desses profissionais — da TV ao cinema, seja em frente ou atrás câmeras.

Herman Gray (2005) afirma que o reconhecimento e a legitimação da produção cultural negra representa uma forma de articular disputas políticas. A inclusão do negro nas indústrias culturais norte-americanas — predominantemente brancas e masculinas — pode ser considerada um meio estratégico de incorporação do público negro que, por extensão, aponta para uma mudança de rumos nos padrões históricos da deformação da imagem do negro nos meios de comunicação. Para o autor, essas são formas de estratégias, táticas e movimentos que, a partir de condições políticas e institucionais desta formação cultural, possibilitam o esforço de reconhecimento de profissionais negros no mercado do entretenimento.

Campanhas como #OscarsSoWhite e o próprio #BlackLivesMatter fazem parte deste momento em que tensionamentos políticos e raciais estão mais expostos. Também são exemplos de exigências de direitos à vida e uma política de representação que não orbitam apenas nas bases da crítica social, elas também reafirmam a urgência da crítica cultural.

Claro que ainda estamos falando de uma indústria cultural fortemente masculina e racialmente tendenciosa que incorpora demandas sociais em prol do capital. Jacques Rancière, em O Ódio à Democracia, comenta sobre o estado da definição de democracia na pós-modernidade. De acordo com o filósofo, a ideia de democracia se confunde com a perspectiva individualista do consumidor, criando uma noção democrática uma questão apolítica e mercadológica.

Concordo em parte com o pessimismo do autor quanto a questão do capital. Vivemos em um momento particularmente estranho em termos do que podemos considerar como exercício democrático. Mesmo aceitando e compreendendo o apelo mercadológico existente nas produções televisivas e iniciativas de engajamento estritamente direcionado criadas por canais de entretenimento, ainda luta-se na esperança de enxergar a luz no fim do túnel.

A inclusão do negro nas mais diversas condições de produção cultural é por si só um ato político importantíssimo. É uma oportunidade (e responsabilidade) de narrar e criar outras perspectivas sobre o corpo negro. Esse momento, em particular, demonstra um cenário de progressão constante da presença de profissionais negros nessa indústria e como o próprio vídeo anuncia “Isso não é um momento. É um movimento”.

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