Você é 97% preconceituoso com o seu país

Caio Amaral
Lindíssima disse tudo
6 min readJun 5, 2018
Foto promocional de 3% (2016-Presente).

Tudo bem. Você pode ficar incomodada ou incomodado com filmes dublados. Pode, também, usar aquela opção de alterar o idioma da série ou filme que está assistindo e escolher o que quiser. Ainda assim, pense comigo: se existe uma série, por exemplo, no português brasileiro, sua língua nativa, e você decide ignorar esse fato e altera o áudio para o inglês, será que não existe uma questão um pouco mais estrutural por trás dessa escolha?

Hoje em dia, é muito difícil encontrarmos alguém que, no mínimo, não sabe sobre o que se trata a Netflix. Por conta disso, é igualmente incomum acharmos pessoas que não acompanham ou já ouviram falar sobre alguns dos principais títulos desse popular serviço. E, goste ou não, 3% (2016-Presente), primeira ficção seriada brasileira original da supracitada plataforma de streaming, é uma de suas importantes obras. E, inclusive, vale a pergunta: será que a reflexão proposta por uma obra não-tão-distópica e que trata de temas como meritocracia, oportunidades mal distribuídas, problemas de administração e infraestrutura socioeconômica e política, e a divergência colossal de qualidade de vida — afinal, na obra, apenas 3% da população é considerada merecedora de uma vida de regalias e recebe a oportunidade de se mudar do Continente para o Maralto, enquanto o restante permanece vivendo em condições que desafiam a subsistência — , não deveria despertar no público brasileiro um maior interesse?

Podemos, sobre a série, discorrer sobre um fato que seria cômico, se não, no mínimo, preocupante. Em 2017, a Netflix divulgou resultados de diversos hábitos de consumo de seus assinantes que aconteceram ao longo do ano. Um deles é a lista de séries mais “devoradas” e, no contexto brasileiro, a série não aparece nem entre as dez mais populares. Diante disso, poderíamos pensar, talvez, que a qualidade e estruturas narrativas simplesmente não sejam capazes de prender o espectador, e a consequência seria uma baixa popularidade. Em contraponto, a mesma lista, no contexto mundial, apresentou 3% como a segunda série mais maratonada da plataforma. Ainda segundo a própria Netflix, por meio de pesquisas divulgadas e coletivas de imprensa, 3% possui outros pontos relevantes para nossa análise: é a ficção seriada de língua não-inglesa mais assistida nos EUA; mais de 50% da audiência da obra é proveniente de fora do Brasil; é considerada uma série atraente, questionadora e que gera empatia em assinantes dos mais diversos países, como Austrália, Coreia do Sul, França, Taiwan, entre outros. A popularidade internacional de 3% é tanta que, em abril de 2018, para divulgação de sua segunda temporada, a plataforma divulgou um vídeo em que os atores comentaram sobre a volta da série não só em português, mas também brincando e se aventuraram em outras línguas.

Não é nenhum mistério que o pensamento propagado pelo ditado popular “a grama do vizinho é sempre mais verde” está presente nos raciocínios de diferentes públicos, independente de seus países de origem. Vale destacar que esse ponto se mostra presente, principalmente, nos brasileiros. Ou vai dizer que você não conhece dezenas de pessoas que compartilham dizeres como “novela é ruim”, ou “a novela tal é ruim”, enquanto a mesma novela está sendo exibida e sendo aclamada em outros países? Ou, melhor, quando as telenovelas brasileiras, em geral, costumam receber excelentes feedbacks das críticas internacionais? Alô, Avenida Brasil (2012)!

O público brasileiro, em sua maioria, definitivamente não dá importância aos produtos de entretenimento aqui produzidos, e vale enfatizar que isso não significa que é uma obrigação que todos os brasileiros considerem 3% uma obra-prima. Seja qual for a minha ou a sua opinião sobre o que define uma narrativa de qualidade, essa série exibe justamente os impactos fervorosos de uma sociedade construída sobre modelos meritocráticos, promovendo uma sociedade de indivíduos que se esforçam desde seu nascimento para se afastarem da tênue separação entre “eu” e “nós”, pois, ao completarem vinte anos, para que alcancem a oportunidade de uma vida melhor, no Maralto, os personagens têm que provar que o seu “eu” é muito mais capaz e virtuoso do que o restante do Continente, o “nós”, inferior, deplorável e sem aptidões, que o acompanhou desde o nascimento — e através desse constante esforço dos personagens para quebrar a percepção de “eu” e “nós” como uma só unidade, a narrativa se desenrola. E enquanto os indivíduos ficcionais se esforçam para que consigam escapar de suas sociedades nativas, sujas e vergonhosas, grande parcela dos indivíduos brasileiros se esforçam para consumir todo e qualquer produto que os afastem de sua realidade, muitas vezes, para eles, igualmente vergonhosas. Será que existe tanta diferença entre ficção e realidade?

Sejam novelas, sejam ficções seriadas, sejam filmes, o pensamento problemático e dotado de preconceitos costuma ser o mesmo: “se foi feito no Brasil, não é bom”. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, para essa parcela supracitada do público, basta falar que um produto é internacional e pronto, torna-se digno de atenção. E esse é apenas um exemplo das milhões de situações em que o brasileiro se esforça para vangloriar países que não o seu e, sobretudo, todo e qualquer produto de origem norte-americana. Mais uma vez, enfatiza-se o esforço para se sentir pertencente a um “nós” diferente do comum, assim como os personagens de 3% querem deixar de lado a sociedade-Continente para ingressarem na sociedade-Maralto.

Joana e Rafael, personagens de 3%, representando minhas reações ao ouvir as falas apresentadas no final desse parágrafo.

Posso, inclusive, trazer um pouco mais desse pensamento para a minha vida cotidiana: na última semana, em questão de dois dias, meus pais e irmão assistiram todas as duas temporadas de 3%. Enquanto andava pela casa e fazia outras coisas, pois já havia assistido toda a série, observei, hora após hora, que eles devoraram todos os dezoito episódios da série com áudio em inglês e legendas em português. Quando finalmente terminaram, após contar sobre a origem da série e perguntar sobre os porquês de terem assistido daquela maneira, recebi algumas respostas curiosas, e destaco três: “nossa, mas é brasileira? É tão boa, nem parece”; “Brasil fazendo série? Achei que a gente só fizesse novela de bom”; “dublado é ruim, né, então não veria dublado, mesmo sendo brasileira”.

Se apenas minha família seguisse raciocínios desse tipo, menos mal. Infelizmente, como podemos diagnosticar analisando publicações e comentários por aí, inclusive nas próprias matérias de divulgação de 3%, posturas desse tipo são comuns. Eu, por exemplo, por ficar incomodado com falta de sincronia entre os diálogos e as bocas das atrizes e atores, sempre opto por assistir obras nas línguas em que foram gravadas. Isso vale para a espanhola La Casa de Papel (2017-Presente), a dinamarquesa Rita (2012-Presente), 3% e muitas outras — com exceção talvez apenas para animações, ou você acha que vou assistir Os Incríveis 2 sem ouvir sobre o “Toninho Rodrigues”? — , mas, é claro, isso não me torna melhor ou pior do que você.

Talvez, minha mínima e esquecível vontade de dar algum valor às línguas originais de filmes, séries e outras obras seja bobeira. Talvez, não. Mas, deixando todos esses talvezes de lado, será que já não passou da hora de olharmos com um pouco mais de atenção e carinho para os nossos próprios gramados?

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Caio Amaral
Lindíssima disse tudo

Product Manager @ idwall / Mestre em Comunicação pela UFF