Dois dias pra pensar o jornalismo digital

Um resumo do que vi no II Simpósio Internacional de Jornalismo em Ambiente Multiplataforma, na ESPM

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Passei dois dias em São Paulo, participando do II Simpósio Internacional de Jornalismo em Ambiente Multiplataforma, na ESPM. Pude colocar na roda de discussão meus dois projetos de pesquisa atuais e ainda respirar um pouco fora do circuito mais tradicional de eventos da comunicação, o que foi bem interessante. Deu pra perceber a intensificação da conversa da comunicação com outros campos e como o jornalismo se beneficia com a contribuição de pesquisadores originários de outros cursos. Tentarei resumir aqui um pouquinho do que vi e ouvi nesses dois dias.

Mesa de abertura: Elisabeth Saad Correa (ECA/USP) e Ariel Palácios (Globo News/Buenos Aires). Mediação por Magaly Prado (ESPM)

A abertura ficou por conta da Elisabeth Saad Corrêa (ECA/USP), que basicamente conduziu sua fala a partir de um esquema de empresa de mídia informativa, no qual destacou a importância das estratégias para a inovação, como ações visando o longo prazo e o comprometimento com o planejamento estratégico. Alguns pontos fundamentais são a criação de labs, incentivando a geração de parcerias entre universidades e veículos (e eu frisaria também empresas de tecnologia e startups); o papel dos algoritmos; as relações entre o mercado e a academia (que perpassam pelo primeiro ponto) e o papel disruptivo que a universidade precisa incorporar nesses processos.

Ariel Palácios (Globo News/Buenos Aires) veio com o termo pós-verdade, citando o The Economist como um dos precursores do termo, que nada mais é do que o conjunto de informações falsas divulgadas, e circuladas, como se fossem verdadeiras.

E aqui um parêntese: pós-verdade, fake news e o que mais anda se usando por aí para falar de conteúdo falso circulando em rede e consumido como se fosse verdadeiro não justifica o tempo que perdemos deixando as coisas chegarem onde chegaram.

Os fatos são menos influentes do que os apelos e as emoções na constituição da opinião pública — foi um dos argumentos de Ariel para abordar a grande quantidade de informação falsa que acaba gerando consequências reais na sociedade. Para ele, as mentiras acabam ganhando força pois carregam aquilo no qual as pessoas que as compartilham querem acreditar, em função do que pensam, de suas convicções e medos, entre outros sentimentos.

Recuperando o caso da suposta base russa na Venezuela, Ariel diz que quando o jornalismo desvenda a mentira e mostra uma realidade até mesmo mais prosaica, as pessoas se revoltam porque perdem a possibilidade de teoria da conspiração se efetivar. Destaca, assim, a visibilidade que a rede concede a múltiplos discursos na construção da pós-verdade. Os problemas informativos resultam do compartilhamento nas redes e dos filtros — a circulação da (in)verdade acontece pela confiança naquele que está compartilhando. A certificação de verdade, ainda que seja uma grande mentira, se consolida pelo número de likes e compartilhamentos.

Os grupos de trabalho foram divididos em diversas mesas. No primeiro dia, como não estava apresentando ainda, resolvi acompanhar uma mesa sobre novos negócios em jornalismo. Ali assisti a apresentação do texto Gestão e decisões estratégicas em negócios de mídia: meta análise, do professor Fabiano Rodrigues, do mestrado profissional em jornalismo da ESPM-SP. Ele fez um apanhado de artigos que tratam sobre esse assunto, elencou algumas questões sobre a gestão de empresas jornalísticas e como teorias de diferentes áreas, como a administração e a economia, são utilizadas como aporte para pensar os negócios de mídia. Essa recorrência à uma base teórica que não vem da comunicação mostra como o próprio campo é carente de estudos sobre modelos de negócio. Fabiano me contou que entrou há pouco tempo como professor no mestrado e, vindo de outro campo que não o jornalismo, está enfrentando muitos desafios. O trabalho dele é muito interessante para quem vem pensando modelo de negócio em jornalismo.

É interessante pensar por esse ângulo, mas também entendo que essa interdisciplinaridade, mais do que necessária, é natural, considerando o histórico de empresas jornalísticas que pouco precisaram pensar em estratégias de negócio ao longo do século XX. Com a diversificação de atores envolvidos em processos de produção, circulação e consumo de conteúdos jornalísticos não há muita saída para iniciativas que partem desde as grandes empresas e grupos de comunicação até as menores propostas de atividade jornalística, ainda embrionárias.

Assisti também ao trabalho da professora Egle Müller Spinelli, Associações de inovações aos modelos de negócio nas organizações jornalísticas. a Egle também é professora no mestrado profissional da ESPM e a pesquisa dela tem a inovação e o modelo de negócio em jornalismo como focos.

Ela trabalha com cases jornalísticos, tentando verificar como modelos de negócio em jornalismo podem ser associados a processos de inovação dentro de organizações jornalísticas. Usa uma matriz de modelo de negócio do Henry Chesbrough, para pensar a inovação, aplicando-a em casos do jornalismo. A partir dessa inserção de diferentes casos nessa matriz ela vai apontando algumas dificuldades e vantagens que iniciativas jornalísticas enfrentam em busca da inovação. Cada caso é um caso, mas é interessante de ver como os problemas são recorrentes e como algumas vantagens acabam subaproveitadas.

Ainda nessa mesa assisti ao trabalho dos professores, também lá do mestrado, André Deak e Edson Capoano, Novos Valores ou Baixo Custo? Inovação Disruptiva em Meios Nativos Digitais. Eles pegaram o mapa do jornalismo independente da Agência Pública e cruzaram com os dados de uma pesquisa coordenada pelo Deak dentro do Media Lab, na ESPM.

O tópico que guia a pesquisa deles é a ideia de inovação disruptiva do Christensen, que fala sobre um fenômeno que cobra do mercado mudanças estruturais dentro de um contexto de revolução sistêmica. Capoano diz que entre todas as iniciativas que analisaram, infelizmente penso eu, nenhuma delas atende ao critério de autossustentação, que Christensen incorpora nessa noção de inovação disruptiva. Ou seja, são inovadoras, são incríveis, são bacanas, mas não sobrevivem por muito tempo por não conseguirem estabelecer um modelo de cobrança pelo conteúdo que gere receita o suficiente para mantê-las vivas.

A terça-feira começou com outra mesa de debate, para discutir narrativas e jornalismo internacional. Dulcilia Buitoni (ECA/USP), Carla Jimenez (El País/Brasil) e Leonardo Stamillo (diretor editorial do Twitter na América Latina) falaram sob a mediação de Renato Essenfelder.

Particularmente eu gostei muito da fala do Leonardo Stamillo, que começou questionando "o que diabos o Twitter está fazendo em uma mesa sobre jornalismo?". Para ele o Twitter se constituiu com o passar dos anos em uma rede de conteúdos e interesses, e não uma rede social — nesse ponto dá para gerar um debate, visto que elementos de redes sociais podem sim ser encontrados ali e certamente contribuem para as dinâmicas em torno dos conteúdos. Se pensarmos em conversação, por exemplo, essa discussão se intensifica. Para ele, no entanto, a pontualidade das interações, o relacionamento estabelecido a partir de um conteúdo e que finaliza depois que ele é compartilhado, é mais intensa do que a constituição de um laço social ou uma efetiva amizade na condução de conversas pelo site. Um bom tópico, mas foi só a introdução de uma fala que focou muito no jornalismo feito pela empresa a partir dos conteúdos publicados pelos usuários. E foi aqui que a fala dele me chamou muito a atenção.

Ele começou contando um pouco sobre como realizou a tarefa de ajudar os jornais a aproveitarem melhor o Twitter, como fonte de informação, para entender a audiência, para encontrar o contraditório e a partir disso fazer jornalismo, até chegar na construção do Moments — que eu confesso acessar muito pouco, ou quase nada.

Falando sobre a equipe de jornalistas profissionais que ele coordena na busca pelo que há de melhor em jornalismo no Twitter para cruzar o que há de mais relevante no dia com aquilo que as pessoas buscam na plataforma mostrou o quanto a curadoria é uma das práticas cada vez mais presentes no jornalismo digital. Quando questionado por uma aluna de jornalismo sobre o jornalismo como entretenimento explicou como o jornalismo é também entretenimento e como storytelling é a maneira como tornam a curadoria um processo jornalístico que pode gerar conteúdo de entretenimento — ainda que o resultado final não seja um amontoado de asneiras e inutilidades.

Leonardo situou o Moments como uma ferramenta que através da curadoria combate o fake news, pela montagem de uma narrativa a partir do encadeamento de tweets; uma narrativa menos agressiva daquela sem curadoria que compõe a timeline do usuário, acelerada e desorganizada.

Por fim, pude apresentar meus dois projetos de pesquisa, assistir Snowden no tempo que sobrou após as apresentações e voltar pra casa cheia de novas dúvidas e ideias. A programação do evento está aqui e os títulos dos trabalhos dão a dimensão do que foi discutido nesses dois dias de atividades.

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Maria Clara Aquino
Linguagens e Práticas Jornalísticas

Maria Clara Aquino. Doutora em Comunicação e Informação. Pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos