“É verdade esse ‘bilete’”: o que a Linguística tem a dizer?

Eduardo Glück
Linguarudo
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2 min readSep 12, 2018
Bilhete criado por Gabriel Lucca, cinco anos, na cidade de Bocaina, interior de São Paulo.

Nestes últimos dias, você já deve ter lido (inúmeras vezes), nas diversas plataformas digitais, a frase “é verdade esse ‘bilete’’’. O público achou o máximo esta declaração. Tudo começou com um menino de cinco anos, chamado Gabriel Lucca, que, para não ir à escola, resolveu fazer um bilhete em nome da professora (inclusive com sua “assinatura”). A intenção final era que sua mãe, lendo o tal bilhete, acreditasse que, no próximo dia, não haveria aula. Mas o que a Linguística, ciência que estuda a linguagem, tem a dizer sobre esse episódio? Há vários aportes teóricos de que poderíamos nos valer para compreender o que aconteceu. Aqui, vamos pensar, juntos, a partir da existência de um eu que se dirige a um tu por meio do gênero bilhete.

Vamos lá: o renomado filósofo russo Mikhail M. Bakhtin nos diz que o eu, aquele que está com a palavra, sempre está em interação com um tu, aquele a quem a fala do eu se destina, e isso ocorre por meio de enunciados, sejam falados ou escritos. O enunciado, assim, é uma unidade real estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, sendo uma unidade real do discurso. Dessa forma, Gabriel Lucca (eu), estava em interação com sua mãe (tu), por intermédio de seu bilhete (enunciado), com a finalidade de que ela acreditasse que aquelas eram palavras de sua professora, e que, de fato, seria feriado no dia seguinte. Se tudo desse certo, ele ficaria em casa e não teria que ir para a escola.

Além disso, Bakhtin nos esclarece que nós sempre projetamos o outro nos nossos enunciados. Isto é, o discurso do outro está em meu próprio discurso, pois, ao falar, eu prevejo esse tu a quem me dirijo. E isso fica claro no caso do menino Gabriel. Não foi por acaso que ele, ao final de seu texto, escreveu a famosa frase: “é verdade esse bilete’’. Gabriel, já presumindo que haveria a possibilidade de que sua mãe duvidasse da vericidade do bilhete, alertou que a mensagem era mesmo “verdadeira”. E são exatamente esses cálculos feitos por uma criança ao redigir um texto que revelam a riqueza do enunciar-se, mostrando que sempre há uma determinada intenção em nossa fala/escrita, a qual acontece em contextos específicos.

O episódio do bilhete de Gabriel nos apresenta um pouco das diferentes estratégias enunciativas empregadas pelo produtor textual, mesmo que esse produtor tenha apenas cinco anos.

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Eduardo Glück
Linguarudo

PhD in Applied Linguistics from Unisinos University. Mester in Applied Linguistics from the same institution.