Além das palavras

Maria Eduarda Moro Bortolini
Linguarudo
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3 min readJul 27, 2018

Análise de dicionários de alemão, espanhol e português aponta expressiva distinção entre os gêneros masculino e feminino

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Apesar das grandes mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, principalmente quanto à igualdade de gênero, estruturas patriarcais persistem em diversas sociedades. Os movimentos feministas, consolidados apenas nos anos 1960, incorporam a luta contra questões como a violência contra a mulher, a diferença salarial entre gêneros e a desigualdade no mundo laboral, em que determinadas áreas são dominadas por um gênero específico. O que poucos sabem é que o uso da linguagem contribui, e muito, para sustentar tais condições, refletindo e influenciando como a sociedade vê as diferenças. Assim, muitos pesquisadores e ativistas passaram a se preocupar com o uso desprestigiado de designações femininas para certas profissões, fato que contraria o ideal de paridade de oportunidades no mercado de trabalho, exigindo mudança nas práticas discursivas.

Tal realidade motivou o estudo das pesquisadoras brasileiras Giselly Oliveira de Andrade, Gislene Lima Carvalho e Romana Castro Zambrano, que teve como proposta a análise do discurso referente às diversas profissões presente em dicionários, verificando a representação de gênero contida neles e apontando eventuais mecanismos discursivos que possam perpetuar a dominação de gênero em sociedade.

A pesquisa, realizada em conjunto entre a Universidade Estadual do Ceará, Universidade Federal do Sergipe e Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, foi feita através da consulta de três dicionários gerais monolíngues em idiomas diferentes. O corpus foi constituído pelo Minidicionário Aurélio de Língua Portuguesa (Ferreira e Ferreira, 2010), representando o português; para representar o espanhol, foi escolhido o Diccionario de la Lengua Española (Real Academia Española, 2014); e para o alemão, o dicionário Duden online (Dudenredaktion, 2016). Para a análise detalhada, primeiramente, realizou-se uma leitura exclusiva de verbetes referentes às profissões e, baseando-se na Análise Crítica Feminista do Discurso e nos estudos da Lexicologia e Lexicografia, as pesquisadoras escolheram excertos mais salientes. A análise foi feita, inicialmente, em cada léxico de maneira individual, e, posteriormente, de forma comparativa. Seis palavras foram elencadas para comparação: educador, enfermeiro, juiz(a), médico, piloto e professor(a).

Ao analisar as palavras e compará-las entre os três idiomas, as pesquisadoras constataram a predominância do gênero masculino nos verbetes, mesmo naqueles em que mulheres dominam a profissão, segundo censo do IBGE, demonstrando um discurso fortemente marcado por convenções sociais. “A distinção entre os gêneros é bastante expressiva. Na verdade, mostra-se mais veemente do que aquela verificada na realidade existente em nosso meio social”, comenta uma das pesquisadoras. Das seis palavras no português, apenas duas apresentaram verbetes próprios a cada uma das formas de gênero. Das restantes, somente três fizeram uso de termos neutros em suas conceituações, porém logo apareceram acompanhados de alguma marcação no masculino. No espanhol, somente o verbete piloto não apresentou as duas formas de gênero na palavra-entrada. Merecem atenção especial os verbetes juez,za e médico,ca, em que se verificou a adoção da forma coloquial pouco usada mujer de juez/médico (mulher de juiz/médico), expressão muito criticada por definir a mulher a partir de seu esposo. Já no alemão, todos os vocábulos analisados apresentaram verbetes próprios para o gênero masculino e feminino. Porém, no que diz respeito às entradas femininas, as seis têm como base a versão masculina, utilizando como expressão “forma feminina de” junto do cargo no masculino.

Os resultados obtidos mostram que dicionários, como obras lexicográficas, podem refletir as manifestações de dominação masculina naturalizadas na sociedade, porém também contribuem para consolidar e conservar tais discursos, bem como suas estruturas de subjugação.

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Maria Eduarda Moro Bortolini
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Graduanda em Letras - Inglês na UNISINOS