Alice no País …. dos Maravilhosos Porquês

Daiana Campani
Linguarudo
Published in
6 min readJun 11, 2020
Ilustração: Luciane Wagner Raupp

— Manhê, quantas crianças você atendeu hoje no consultório?… Alguma usava aquele aparelhinho de ouvir melhor?… E hoje você ajudou alguém a falar melhor?… De onde sai a minha voz?… Por que o Cebolinha fala “elado”?… Você pode atender o Cebolinha?… Por que papagaio fala?… Você já atendeu papagaio?… Você consegue fazer o Fritz falar em vez de só latir? …

Todas as noites era a mesma coisa. Na hora de dormir, depois do livrinho de história, o que vinha na mente de Alice era, em vez do sono, um batalhão de porquês sobre o trabalho da mãe, Ana. Desde muito cedo, a garotinha de cinco anos já aprendera a pronunciar aquela palavra difícil que indicava a profissão da mãe: fonoaudióloga. Só que, naquela noite, em vez de perguntar sobre os pacientes que precisavam da ajuda de sua mãe para ouvir e falar melhor, Alice fez uma pergunta diferente:

— Mãe, por que a tartaruga é lenta?

— Como é que é? — perguntou Ana, parecendo estar com todo o sono que deveria ser da Alice…

— Por que a tartaruga é lenta?

— Sei lá, filha, nunca pensei sobre isso. Mas por que essa dúvida agora?

— Porque hoje a vó Ju me contou a historinha da lebre e da tartaruga…

— Ah sei… Deve ser porque o casco é pesado, daí elas não conseguem correr — disse a mãe, sem ter a mesma certeza com que respondia às dúvidas da pequena sobre a voz dos humanos e a do papagaio. — Agora dorme, filha!

— Não pode ser por isso, mãe! Se isso fosse verdade, os tatus também seriam lentos, mas eles até correm!

— Ai, filha, sei lá. Nunca pensei sobre isso! Amanhã a gente pesquisa. Tô com sono!

— Mãe, como você não sabe? Você sempre sabe tudo! Você fez até faculdade!

— Filha, ninguém sabe tudo. A mamãe sabe muita coisa sobre a voz porque estudou e ainda estuda muito sobre isso, mas não sei tudo não!

— Já sei! Liga pra vó Ju! Ela eu sei que sabe tudo. Ela é professora. E tem um montão de livro lá na casa dela. Esses dias ela até deu uns de presente, porque não tinha nem mais lugar pra tudo aquilo. Liga agora pra ela!

— Filha, são 10 da noite, você acha que eu vou ligar pra sua vó a essa hora? Amanhã você pergunta pra ela!

A menina não gostou de ter que esperar até o dia seguinte, mas resolveu tentar dormir, quando a mãe saiu do quarto e apagou a luz.

No dia seguinte, ao chegar à casa da avó, que cuidava da pequena diariamente, Ju não teve nem tempo de cumprimentar a neta:

— Oi, meu a…

— Vó, por que a tartaruga é lenta?

— Ãh?

— Ontem você me contou a história da lebre e da tartaruga. Daí eu fiquei pensando e quero saber por que ela é lenta — disse a Alice, contando à avó a resposta da mãe e rebatendo-a com o exemplo do tatu.

— Não sei, Alice. Temos que pesquisar…

— Mas como você não sabe, vovó? Você é professora! Professoras sempre sabem tudo. Vou ter que perguntar pra minha profe hoje de tarde… — disse a menina, sem disfarçar a cara de decepção — Vovó, tem que ter algum livro aqui que fale sobre isso!

— Olha, Alice, a vovó é professora de literatura, acho difícil ter aqui algum livro de biologia? Vovó não estudou biologia na faculdade.

— Bioquê?

— Biologia. É a ciência que estuda os seres vivos. As pessoas que fazem faculdade de Biologia tornam-se biólogos. Eles estudam também os animais, assim como outros seres vivos. Como o Gui, nosso vizinho.

— Então quer dizer que na faculdade a gente não estuda tudo?

— Não, querida. Você vai aprender melhor sobre algum assunto e mesmo assim não vai saber tudo sobre aquilo. A vovó, por exemplo, gosta muito de literatura, mas não sabe tudo, tudo…

— Mas eu queria estudar pra saber tudo!

— Não dá. Mas a gente sempre pode perguntar pra quem sabe.

— Ou perguntar pro Google né? O Google sabe tudo!

— Nem sempre… É bom sempre ouvir quem estuda e pesquisa sobre aquele assunto. Se tiver dúvida sobre animais, pode perguntar para o Gui, por exemplo. O Gui é biólogo e continua estudando e fazendo pesquisas lá na universidade. Ele vai saber ou, pelo menos, vai procurar a informação no lugar certo!

— Vou mandar uma mensagem pro Gui! — disse Alice, pegando o celular da avó e procurando, no aplicativo de mensagens instantâneas, a foto do vizinho. Em seguida, digitou a mensagem: “SAF SAFÇ WFWEET JHKG W EJ PGR ALICE VOVO”. — Pronto vó, já escrevi pro Gui…

A avó, lendo o “texto” escrito pela neta, riu e imaginou que o vizinho saberia quem estava “pilotando” seu celular. Não demorou muito, Guilherme retornou:

— Oi, Alice! Você quer falar comigo?

— Oi, Gui! Quero sim — e explicou ao vizinho sua dúvida. Pacientemente, ele explicou a questão para a avó e a neta, que escutavam atentas pelo viva-voz a longa fala do cientista.

Quando Ana buscou a menina na escola, no final do dia, Alice nem bem entrou no carro e já foi logo despejando…

— Mãe, a tartaruga não é lenta! Não é bem assim essa história…

Ana, com a cabeça pensando ainda nos vários pacientes do dia, achou que agora quem não estava escutando direito era ela:

— Como assim?

— É que a tartaruga, na verdade, é um bichinho da água. Eu aprendi também a diferenciar tartarugas dos ca..ca…ca…

— Cágados!

— Isso aí. É engraçado esse nome…parece com uma outra palavra feia… — disse a menina colocando as duas mãozinhas na boca e rindo com os olhos. — A tartaruga mora é na água. Ela só vem pra fora da água pra colocar os ovinhos. E dentro da água ela é bem rápida. O peso do casco não importa. Ela tem nadadeira, ela não tem pé pra caminhar que nem a gente. O ca… ca… aquele bicho… ele também vive mais na água. A patinha dele é diferente, tem umas garrinhas. Tem gente que tem ele em casa também. O Gui também falou que as tartarugas e os ca..ca…ca… aqueles lá… se escondem dentro do casco pra fugir dos bichinhos que querem pegar eles, daí eles não precisam correr. Mas o principal motivo é que eles são da água.

— E o tatu?

— O tatu não gosta de morar em água, tatu gosta de morar na terra. E a barriga do tatu é mole. Por isso que aquele tatu se enrola. Ele é duro só em cima. O tatu foge dos bichinhos que querem pegar ele correndo também! Não é só o casco que protege. A tartaruga tem casco em cima e na barriga, daí fica mais difícil de andar na terra e mais fácil de se esconder, né?

— Viu só, filha! Quando temos uma dúvida, os cientistas, como o Gui, estão aí para nos ajudar!

— Eu quero ser cientista também!

— Ah é? E o que você quer estudar?

— Eu quero estudar fono que nem tu e biologia que nem o Gui. Aí eu vou pesquisar e pesquisar até descobrir como fazer o Fritz falar! Se o Kiko, papagaio da Tia Liane fala, o Fritz também pode parar de latir e começar a conversar comigo!

Qualquer semelhança NÃO é mera coincidência. Um agradecimento especial à mamãe Ana Júlia, que gosta de compartilhar as falas geniais da Alice nas redes sociais e que tanto defende a ciência, à vovó Juliana Strecker, que também conta as peripécias da Alice, e ao meu amigo Guilherme Pinto Cauduro, doutorando em Biologia da Unisinos, que sempre responde às minhas dúvidas biológicas. Ele me faz acreditar que, se uma pessoa não pode saber tudo sobre evolução, pelo menos quase tudo ela pode. Ou, pelo menos, pode saber onde encontrar a resposta: na ciência.

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