“Feto anencéfalo”, “natimorto cerebral”, “criança”: uma questão de perspectiva

Estudo mostra como as pessoas manipulam o significado das palavras para defender seus posicionamentos

Aline Nardes dos Santos
Linguarudo
3 min readJul 7, 2016

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O tema do aborto sempre deu muito que falar. No Brasil, a polêmica foi reavivada no processo conhecido como ADPF 54, em 2012, quando o Superior Tribunal Federal (STF) permitiu a interrupção de gravidez de fetos com anencefalia. Anencéfalos não desenvolvem uma parte do cérebro, distúrbio que causa a morte do feto em 100% dos casos. Isso levou os ministros do STF a decidirem que essas gestantes deveriam ter o direito de não manter a gravidez. Assim, após o julgamento, interromper esse tipo de gestação deixou de ser crime no Brasil.

Você deve estar se perguntando: “mas interrupção de gravidez não é aborto?” A resposta para essa pergunta passa por outra questão fundamental — o significado de “feto anencéfalo”. Ao investigar esse fenômeno em minha dissertação de mestrado, realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo/RS), descobri que, durante o processo da ADPF 54, os significados de “feto anencéfalo” variavam de acordo com o posicionamento dos participantes.

Para investigar como as pessoas construíram significados diferentes de feto anencéfalo no processo, fiz uma comparação entre as falas de três diferentes grupos: os representantes de grupos religiosos, os representantes de entidades médicas (que foram ouvidos em audiências públicas do processo) e os ministros do STF, responsáveis pela decisão.

Na comparação dos dados, o estudo indicou que “feto anencéfalo” não tinha um significado uniforme: quando médicos e ministros queriam defender que a gestante tinha o direito de interromper a gravidez, caracterizavam o feto com expressões como “natimorto cerebral”, pois o feto geralmente sai morto do ventre materno. Já os religiosos, defensores do feto, chegaram a chamá-lo de “criança”, associando-o a momentos de afeto em família.

Como se pode perceber, essa visão de significado é um pouco diferente, pois vai muito além daquilo que as pessoas esperam encontrar em um dicionário. Isso ocorre porque a pesquisa segue uma corrente da Linguística que investiga o significado das palavras como algo que está sempre em construção. Além disso, tudo é uma questão de perspectiva: quando estamos defendendo uma ideia, por exemplo, tendemos a usar determinadas palavras que denunciam nosso ponto de vista. Assim, no debate sobre anencéfalos, as pessoas constroem significados diferentes para esse mesmo ser, dependendo de seu posicionamento.

É como se, ao falarmos, atuássemos como pintores prestes a preencher uma tela, mostrando nosso ponto de vista: no caso da anencefalia, se fôssemos a favor da interrupção da gravidez, poderíamos enfatizar a sua falta de cérebro, ou a sua morte. Da mesma forma, se fôssemos contra esse procedimento, poderíamos criar um cenário cheio de vida, em que o feto tivesse uma perspectiva de futuro. Na Linguística, essa construção mental do significado se chama “conceptualização”.

Talvez você possa estar pensando: então, todo mundo pode sair por aí construindo (ou reconstruindo) os significados das palavras? É claro que isso não daria muito certo, pois é preciso que essas construções sejam reconhecidas por um grupo de pessoas. Afinal, as telas que pintamos com as palavras precisam fazer sentido para alguém. E, a partir do momento em que são partilhados, como mostra a pesquisa, esses significados podem ser chamados “modelos culturais”, pois refletem a forma de pensar de determinado grupo.

Além disso, a investigação evidencia que alguns “artistas” têm mais poder que outros. No caso da decisão da ADPF, Rove Chishman, doutora em Linguística Aplicada e orientadora da pesquisa, comenta: “As conceptualizações presentes na decisão do Judiciário, no momento em que foram publicadas, passaram a servir de base para futuras decisões sobre o tema”. Ou seja, nesse cenário jurídico, o que valeu mesmo foram as “pinturas” dos juristas.

Saiba mais sobre a pesquisa aqui.

Aline Nardes dos Santos é mestra e doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

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