Ler não é adivinhar “o que o autor quis dizer”

Se o caro leitor sempre se deu por satisfeito em encontrar aquele sentido pronto, aconselho abandonar a surrada pergunta da tarefa: qual é “o” sentido do texto?

Melquiades Paceli
Linguarudo
2 min readJul 8, 2016

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Quem sabe você estava com a razão quando mostrou o resultado da leitura à professora e ela disse: não, não é isso.

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Você sabia que nós construímos os sentidos do texto? Pois é. Os textos não têm vida própria. Eles mantêm relação com a experiência de quem escreve ou lê. Os nossos modos de encarar a realidade também estão nele. Por isso temos espaço para construir sentidos e não apenas “captar” o sentido, como ainda hoje se diz nas escolas.

Calma, não é você que é ignorante. Não. É nosso modo de ler que precisa melhorar. Estudiosos, como o filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin (1895–1975), perceberam que na leitura ou na escrita estamos sempre envolvidos com a vida, com a cultura, com a história, com o outro. Há sempre uma relação entre texto e sujeito. Por isso precisamos conversar com os textos, construindo sentidos e não esperar esses sentidos como num lance de mágica, como se eles estivessem lá, agasalhados num canto, esperando alguém descobrir. Alguma coisa de vida e cultura está nos textos que lemos ou escrevemos.

Nenhuma palavra é inocente. Ela vem ao mundo para dizer alguma coisa. E, nesse dizer, revela a pessoa. Por exemplo: um aluno procura um lápis que tinha caído no chão. A professora se aborrece e pergunta ao aluno o que ele está fazendo. “Estou caçando meu lápis”. E lá vem a resposta atravessada: “Caçar não, caçar se caça é com cachorro. Pro-cu-RAR”. Para essa professora, a linguagem é uma entidade fixa, não se altera: sempre que se leva os cachorros para pegar animais, é “caçar”; sempre que se busca algo perdido, é “procurar”. Fica com você a tarefa de avaliar a tal professora.

Ler não é adivinhar “o que o autor quis dizer”. Ler (e escrever) é dar alguma resposta a alguém, é dar uma contribuição da nossa vivência; é permitir uma conversa entre texto e sujeito. Daí que um texto pode admitir várias possibilidades de sentidos.

Melquíades P. Sandes Barros, doutorando do Programa em Linguística Aplicada da UNISINOS.

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