Ocupação das escolas: a revolução dos letramentos

Giulia Gambassi
Linguarudo
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5 min readJun 26, 2017
Fonte: Por Wilson Dias/Agência Brasil — Agência Brasil, CC BY 3.0 br, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=52676475

Além de qualquer perspectiva política, o que tem acontecido em diversas escolas de todo o país tem chamado a atenção da mídia, da população e também de educadores. Na Linguística Aplicada, área de estudos da linguagem voltada, principalmente, para a educação e a sociedade, o que os estudantes têm feito está sendo discutido desde 2004.

As práticas de letramentos excedem a ideia de alfabetização ou de aprender algo como apenas absorção de conteúdo. Letramento é mais do que aprender um código, é saber como usá-lo dentro de um contexto que faça parte da vida do aluno. São inúmeros os estudiosos brasileiros que discutem isso, mas há ainda um aprofundamento, voltado a tornar essas práticas críticas, ou seja, que proporcionem problematizações e reflexões sobre a sociedade e a cultura, independentemente da disciplina que está sendo ministrada.

Dentro dos letramentos críticos (“críticos” no sentido de olhar e problematizar, indo além das definições de “bom” ou “ruim), uma questão nos chama atenção quando nos voltamos para as ocupações nas escolas: o chamado learning by design (algo como “aprendendo por design”, em tradução livre). Cope e Kalantzis, por exemplo, já falavam que o engajamento dos alunos é essencial para criar condições otimizadas de resultados pedagógicos, curriculares e educacionais, ou seja, eles já falavam, há mais de dez anos, que quanto mais os estudantes forem ativos e estiverem conectados à escola, melhores vão ser seus resultados e sua aprendizagem. E é esse tipo de relação com a escola que chamamos de learning by design. A ideia de “design” é que adquirimos padrões (como por exemplo, o gênero textual informativo), mas também somos designers de significado em todas as esferas da vida (a elaboração de posts informativos nas redes sociais sobre ocupações, por exemplo). Assim, um design nunca é puramente reprodução ou criação, parte-se daquilo que é conhecido para o aluno e, depois, mostra-se o desconhecido, os conceitos e os conteúdos.

Porém, as discussões sobre esse tema geralmente focalizam a relação professor-aluno-escola, em que cabe ao professor aumentar o envolvimento dos estudantes com o ambiente pedagógico, principalmente considerando o contexto-histórico social e a língua-cultura em que estão inseridos. Mas, o que temos assistido com as ocupações das escolas por todo o país, é que os alunos estão denunciando de forma clara que a escola como se apresenta a eles não funciona mais. O papel dos professores tem sido ressignificado, pois a tomada do espaço por aqueles a quem ele pertence leva esse conceito muito além do que os teóricos poderiam imaginar.

Enquanto, como educadores, pedimos mais envolvimento dos alunos, os estudantes das escolas ocupadas reorganizaram toda a estrutura escolar, fizeram grupos de estudos, oficinas profissionalizantes, debates sobre temas que a eles são relevantes, proporcionando possíveis mudanças pessoais e culturais. Apesar dessas práticas de aprendizagem serem amplamente criticadas pela mídia, deveriam ser olhadas com muito cuidado pelos profissionais da educação.

A escola, os exames (seja o ENEM ou os vestibulares) e a sociedade em geral constantemente desconsideram o saber dos adolescentes, seus interesses, buscando padronizá-los em vontades e interesses feitos comuns de modo forçado. As ocupações, por outro lado, reiteram que essa forma de ensino-aprendizagem não funciona mais. A professora de Artes da Universidade da Pensilvânia Debora Broderick, por exemplo, discute o conceito de collaborative design (design colaborativo), que coloca em primeiro plano não o que o aluno produz, mas o que acontece enquanto ele produz e, a nosso ver, esse é o ponto em que as ocupações mais se aproximam do que esses teóricos tentam colocar em prática há tantos anos. Além de se apropriarem das práticas e do ambiente escolar, o engajamento político e social que está acontecendo enquanto tentam manter algumas atividades do currículo esperado não tem precedentes na educação brasileira. Afinal, não aprendemos a trabalhar em grupo durante nossa formação, aprendemos a pensar de modo individualista e os alunos que têm organizado as ocupações têm muito a nos ensinar sobre “colaboratividade”.

Para Janks, cabe aos professores/educadores, dar acesso para os alunos às formas dominantes de conhecimento, para que eles não fiquem à margem da sociedade, por existir uma esfera de poder produtivo, no sentido de que produz formas de ser e existir. Além disso, quando consideramos o design, estamos considerando que é possível desafiar e mudar discursos (tudo aquilo que é dito sobre algo) existentes sobre adolescência, sobre os jovens pobres e marginalizados e o que mais couber na empreitada dos secundaristas.

Se fôssemos seguir teóricos envolvidos nessa discussão à risca, os docentes deveriam tratar seu espaço de atuação, seja na pesquisa ou no ensino, não só transformando as práticas de ensino, mas tornando possível que os mais interessados na educação tragam o aprendizado para mais perto de si. Entretanto, os alunos das escolar ocupadas não quiseram ou puderam esperar a (transform)ação dos professores e tomaram para eles a responsabilidade e a luta de proporcionar um ensino público, situado e de qualidade para as futuras gerações.

Rocha e Maciel destacam que é importante procurar por releituras e recontextualizações das teorias e práticas no campo da pesquisa aplicada e da educação linguística constantemente, mas nunca foi tão claro que, além disso, é preciso que os professores revisitem suas formações e suas práticas, pois, além de não sermos mais detentores de conhecimento, somos mediadores e, agora, aprendizes de uma nova forma de se fazer a educação.

Em tempos de grave crise na educação, educar criticamente é resistir, mas, mais do que isso, é aprender com as ocupações das escolas e participar ativamente de um redesign do ensino público brasileiro como um todo. Por ainda existir desigualdade e a necessidade de nos responsabilizarmos, não só como educadores, mas como integrantes da sociedade, como partes da ecologia social de que somos constituídos e constituintes, é preciso que olhemos o mundo com lentes críticas, aplicando-as às nossas práticas na educação e na vida.

E se nós queremos ver mudanças e melhorias na educação, existe melhor prática do que a dos próprios estudantes que estão lutando, principalmente, pelas gerações futuras?

Por Giulia Mendes Gambassi e Thais Tiemi da Silva Yamasaki, mestrandas em Linguística Aplicada na Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP.

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