Uma cidade bilíngue: as políticas linguísticas para o Hunsrik no município de Santa Maria do Herval

John Richart Schabarum
Linguarudo
Published in
5 min readMay 15, 2018
Fonte: https://www.flickr.com/photos/ansesgob/24419322783/in/photostream/

Quantas línguas são, de fato, faladas na sua cidade? Acho que já sabemos a resposta, não é? Embora se diga que haja alguns falantes de língua adicional, como por exemplo, o Espanhol, o Alemão ou, mais comumente, o Inglês, provavelmente, a esmagadora maioria da população da sua cidade fale, diariamente, apenas o Português. A língua portuguesa costuma ocupar lugar de destaque na vida das pessoas na maioria dos municípios brasileiros. É por meio dela que a população se relaciona, se comunica e age no mundo. Desse modo, poder-se-ia afirmar que o Brasil é, eminentemente, monolíngue, ou seja, fala apenas uma língua. Contudo, isso não é, necessariamente, verdade.

Uma prova disso é o que ocorre em algumas cidades da região sul do Brasil, mais especificamente, em Santa Maria do Herval. Esse município da Serra Gaúcha é composto de uma população bastante tímida, algo em torno de 6300 habitantes, conforme o último censo, de 2010. Nessa cidade, de acordo com estimativas da professora Solange Johann, aproximadamente 90% da população fala duas línguas: o Português e o Hunsrik. Assim, se pode dizer que este município tem, na prática, uma população bilíngue.

O Hunsrik — ou Hunsrückisch, como também é chamado — era um idioma falado apenas em uma determinada região da Alemanha e que, a partir do início da colonização alemã, em 1824, foi trazido para o Brasil. O Hunsrik, desde lá, vem sendo usado como a principal língua pelos imigrantes e, agora, em grande medida, também pelos seus descendentes. As pessoas que residem fora do município costumam pensar nessa língua como exótica, e que, embora ainda exista, provavelmente, seja falada apenas por alguns poucos idosos.

Muito pelo contrário, o Hunsrik é usado em diversos contextos sociais, por diversas faixas etárias e estratos sociais: no comércio, no convívio familiar e social, nos sermões (tanto na Igreja Católica como na de confissão Evangélica), em funerais — incluindo-se, aí, as rezas e os cantos — , em peças teatrais e, ainda, nas transmissões de uma rádio situada em Nova Petrópolis, que é, diariamente, acompanhada por grande parte dos ouvintes hervalenses. De qualquer forma, isso não é suficiente para constituir garantia de que a língua continue viva. É preciso que se continue a difundi-la, e que se possa amplificar os contextos de uso social dessa língua, principalmente, entre os mais jovens, faixa etária na qual já se constatou uma leve queda do seu uso.

Com o intuito de fazer essa ampliação e difusão de usos sociais e, portanto, uma revitalização da língua, recorreu-se a um campo teórico e aplicado de estudos intitulado de Políticas Linguísticas, cujo principal expoente é o autor Jean Calvet. Essa área de estudos é detentora de vários conceitos importantes, mas trataremos, aqui, mais especificamente, de dois deles: o planejamento de status e de corpus de uma língua. De maneira bem sucinta e objetiva, se pode dizer que o planejamento de status diz respeito aos usos sociais que a língua tem e, como exemplo, podemos remeter, novamente, aos usos que foram elencados no parágrafo anterior. Já o planejamento de corpus diz respeito ao registro escrito da língua, como a confecção de dicionários ou gramáticas, a fim de se preservar o registro escrito dessas línguas para as futuras gerações. Todavia, verificou-se um empecilho: não havia um código escrito e unificado para o Hunsrik, que, naquela época, era uma língua exclusivamente falada e, portanto, ágrafa. Em resposta à necessidade de perpetuar a língua, assim como de difundir os seus usos, se iniciou, no ano de 2004, o Projeto Hunsrik, que, sob a coordenação da professora Solange Johann e com a assessoria linguística da professora Dra em Linguística e Fonética Úrsula Wiesemann, assim como do professor Dr. Martin Dilling, desenvolveu um sistema de escrita, levando em conta alguns critérios: a origem e o parentesco germânico da língua, assim como a influência que o Português já exercia sobre o seu léxico. Dessa maneira, embora se tenha partido da primeira variante do Hunsrik, falada ainda na Alemanha, em meados do século XVIII, se levou em conta, principalmente, a atual variante, falada exclusivamente no Brasil, que, conforme já salientamos, conta com inúmeras palavras da língua portuguesa, que exercem influência sobre o seu léxico. A partir disso, decidiu-se por renomear a língua de Hunsrückisch para Hunsrik, levando justamente em conta as particularidades dessa nova variante, que, atualmente, é classificada como língua latino-americana. Na sequência, foi redigido o primeiro glossário, onde são encontradas as primeiras palavras já registradas em seu léxico. Mais tarde, foi desenvolvido um dicionário infantil, objetivando usá-lo, com instrumento de ensino, em escolas públicas municipais de Santa Maria do Herval. Ainda no âmbito do chamado planejamento de corpus, foram traduzidos alguns livros para o Hunsrik, como, por exemplo: livros de lendas (o negrinho do pastoreio), livros com histórias bíblicas e, mais recentemente, o Pequeno Príncipe.

Por outro lado, no âmbito das Políticas Linguísticas, além das ações de planejamento de corpus e de status, contamos também com as ações de políticas linguísticas promovidas pelo Estado. O Estado do Rio Grande do Sul, por meio da lei 14.601, de 2012, declara o Hunsrik língua integrante do patrimônio histórico e cultural estadual. E, três anos antes, legitimando a importância do Hunsrik para a população local, o Poder Executivo Municipal já havia promulgado o decreto 005/2009, instituindo a possibilidade de fala e do ensino de Hunsrik nas escolas. Chamamos esse tipo de ação de política de aquisição de línguas. O poder público municipal promove o ensino do Hunsrik entre os 2º e 5º anos do ensino fundamental, e, após esse período, se inicia o contato com o Alemão e o Inglês, tornando o ensino nessas escolas plurilíngue, por contar com quatro línguas, incluindo-se o Português. Nesse sentido, é possível afirmar que as heranças linguísticas não serão esquecidas, nem suprimidas, e que, ao mesmo tempo, o futuro também não deixa de ser vislumbrado.

E aí, na sua cidade, também se fala e se escreve alguma língua de herança, como o Hunsrik?

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