A censura no cenário cultural de BH

Vários casos servem de exemplo para demonstrar que ainda existe censura

Luiz Augusto Barros
Linha Fina
7 min readSep 6, 2018

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Gladyston Rodrigues/EM/D.A. Press

No final de julho, a Praça da Liberdade foi fechada para uma revitalização completa e cercada por vários tapumes. Surgiu, então, a iniciativa de pintá-los com o objetivo de transformá-los no “Mural Liberdade”. A ideia partiu do Instituto Amado, em conjunto com a Galeria de Arte Quartoamado e profissionais do meio, além de contar com o apoio da Prefeitura de Belo Horizonte e do Movimento Gentileza.

Dias antes, o Instituto Amado, que tem como objetivo conectar a cidade com os moradores por meio da arte, abriu um processo seletivo e escolheu cerca de 50 artistas para executar a ideia do mural. Entre os 260 inscritos estava Patrícia Caetano, também conhecida como Pat, uma artista plástica de 36 anos formada pela Escola de Belas Artes da UFMG, e que foi selecionada para pintar os tapumes, em agosto.

Em seu espaço, Pat desenhou uma mulher nua, com a intenção de homenagear a mulher mineira, que ainda é vítima de opressão e machismo, e de pedir respeito. A artista escreveu “Respeita as Minas” sobre a pintura. Com spray branco, uma pessoa não identificada cobriu os seios e o sexo da mulher desenhada na madeira. Patrícia ficou sabendo do ocorrido através de uma amiga. “Ela passou por lá, viu e me avisou. Eu já esperava algo do tipo. Não me assustei demais, mas fiquei chateada”. Apesar do ocorrido, a artista plástica disse que não tomou nenhuma providência formal. “A burocracia seria altamente desgastante e não sei se teria algum retorno de fato”.

Durante a execução do trabalho, Pat contou que a repercussão foi muito positiva, tanto por quem estava lá durante a pintura, quanto depois. Mas logo após a censura de sua pintura, várias pessoas se manifestaram contra a artista. “Fiz uma denúncia pelas redes sociais. A maioria das pessoas foi a meu favor, mas vários ‘comentaristas de jornal’, aquele tipo de gente que vive de odiar qualquer coisa que apareça na mídia, não”, contou. “Disseram que eu fiz o trabalho para aparecer, que devo ser ‘feminazi’, esquerdista, petista e feia, dentre outras barbaridades”.

O Movimento Brasil Livre (MBL), movimento político brasileiro que defende o liberalismo econômico e o republicanismo, fez uma publicação no Twitter repercutindo o trabalho da artista. Danilo Gentili, comediante e apresentador do programa “The Noite”, do SBT, através de sua conta na rede social, comentou a publicação, dizendo “Mas perae…pichação é arte só se for no muro da minha casa, é isso? Se for no muro da lacração é vandalismo”.

Através de sua denúncia no Facebook, Patrícia se manifestou dizendo: “Parabéns, tradicional família mineira que não tem corpo, não se aceita, não tem alma, e resolveu censurar meu trabalho. Este é o seu atestado e sua assinatura de hipocrisia, atraso e recalque”, escreveu. Em outra publicação, disse “A arte eu posso retocar, a dor na alma delas… não. Penso em reagir e transformar o ocorrido em outra mensagem mais impactante. Mas não farei por mim. Farei por elas, por cada uma…me sinto mais forte, motivada e continuarei a batalhar por todas nós até o fim dos meus tempos. Sigamos…JUNTAS, unidas em amor porque isso a gente tem de sobra!”.

Segundo a artista plástica, órgãos formais do governo não a procuraram depois do ocorrido. A organização do evento, através de uma nota, se posicionou a favor de Pat. A PBH, também em nota, se limitou a lamentar “o desrespeito com a obra da artista Patrícia Caetano”.

Mais tarde, também no mês de agosto, mais um exemplo de censura ocorreu no cenário cultural de Belo Horizonte. A instalação “Sonho agridoce, ou imaculado”, exposta no Centro Cultural São Geraldo, na Região Leste de BH, exibiu mais de 200 fotos. Entre elas, presas a um vestido de noiva, imagens de homens seminus. O artista, um fotógrafo de pseudônimo Meshiacha, tinha como objetivo inspirar reflexão sobre o casamento.

Gladyston Rodrigues/EM/D.A. Press

A obra foi questionada por vereadores, que alegaram “apologia à erotização e à masturbação” e afirmaram que crianças estariam “expostas a uma mostra pornográfica.” Após a crítica dos parlamentares por meio de dois vídeos publicados nas redes sociais, pelo menos quatro ameaças ocorreram ao espaço, criando a necessidade de reforço na segurança por meio da Guarda Municipal de BH.

Fernando Borja (Avante), através de uma publicação em seu Instagram, disse: “Hoje, a minha equipe e eu fomos surpreendidos com uma denúncia de uma exposição no centro cultural do Bairro São Geraldo com apologia à erotização e masturbação, mas sem nenhuma restrição à entrada de crianças. Lamentável!”. Jair Di Gregório (PP), vereador e líder da bancada cristã, fez um vídeo ao vivo para mostrar a exposição, chamada por ele de “aberração”. “É brincadeira o que a cultura de BH está fazendo com as nossas crianças”, afirma o vereador no vídeo. “Isso nunca foi arte e nunca vai ser. É pornografia”. Di Gregório já esteve envolvido em outro caso de censura, quando denunciou a exposição do artista Pedro Moraleida, “Faça você mesmo sua Capela Sistina”, exibida no Palácio das Artes.

Através de uma nota oficial, o artista se manifestou dizendo que, de acordo com o Guia Prático de Classificação Indicativa do Ministério Público do Governo Federal, o trabalho segue os critérios indicados para a classificação livre. A Fundação Municipal de Cultura também se pronunciou, afirmando que o trabalho se encontra dentro dos critérios e que “lamenta e repudia o ato de desrespeito dos vereadores”.

Meshiacha utilizou a nota para fazer um desabafo: “Infelizmente, passamos por momentos políticos no qual o direito à liberdade de expressão tem levado alguns setores sociais a acreditarem que todas as formas de arte, cultura e expressão devem seguir apenas seus parâmetros conservadores. No entanto, é preciso ressaltar que a liberdade de expressão é para todas e todos”. Ele ainda completou, dizendo que “os debates são sempre importantes e as opiniões contrárias merecem ser ouvidas, desde que isso seja feito de forma respeitosa”.

O lado jurídico

De acordo com a mestre em Direito Público pela Fumec, professora de Direitos Humanos e advogada Alexsandrina Ramos de Carvalho Souza, a censura jamais será necessária, pois a liberdade na busca de informações e de opinião não existirá se forem submetidas à avaliação prévia de seu conteúdo. Segundo ela, a censura é inconstitucional, considerando que o art. 5º, IX da Constituição Federal (CF) estabelece que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura e licença”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão sem interferência e fronteiras. No entanto, a CF, apesar de confirmar estes direitos, assegura a livre manifestação de pensamento, desde que não haja anonimato. Além disso, assegura direito de resposta proporcional ao agravo.

Ao ser questionada sobre o caso da artista plástica Patrícia Caetano, Alexsandrina disse que o conceito de liberdade artística é extremamente complexo e varia de acordo com a evolução da sociedade: “O afrontamento, a provocação ou a profanação são componentes estéticos de várias expressões artísticas, por isso a adequação da conduta ao tempo e ao contexto em que é exercida torna-se essencial para sua caracterização. Na verdade, o que a Constituição proíbe são os abusos tais como discursos de ódio, segregação racial e perpetuação de ideias discriminatórias, além de proteger os direitos das crianças e adolescentes. No caso do grafite da Praça da Liberdade, o desenho não é abusivo e nem faz incitação ao sexo. As partes íntimas cobertas fazem parte do contexto do desenho. Além disso, não vislumbro um discurso discriminatório em relação às mulheres. Pelo contrário, a arte proclama pelo respeito às mulheres, além de ressaltar a sua beleza e pureza”, explicou a advogada.

Ainda sobre o caso, a advogada garantiu que a artista censurada poderia procurar as vias judiciárias para obrigar o poder a tirar as tarjas brancas nas partes íntimas do desenho, e que Patrícia teria grandes chances de vencer a causa caso optasse por abrir um processo.

Apesar da Constituição Federal garantir a livre expressão artística, essa liberdade pode sofrer restrições coerentes com sua amplitude, derivadas da colisão com outros direitos também reconhecidos como essenciais. Em relação ao caso do fotógrafo Meshiacha, Alexsandrina disse que o texto constitucional estabelece que diversões e espetáculos públicos ficam sujeitos a regulamentações especiais. “Cabe ao poder público informar sobre sua natureza e faixa etária, além de locais ou horários em que sua apresentação seria inadequada”.

O combate à censura

A Frente Nacional Contra Censura (FNCC), fundada em Novembro de 2017, tem como objetivo lutar contra atos contrários à liberdade de expressão. A Frente foi lançada no Palácio das Artes, em virtude dos protestos contra a exposição “Faça Você mesmo Sua Capela Sistina” e a tentativa de proibição da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, ambas inspiradas em ações que motivaram o encerramento da mostra “Queermuseu”, em Porto Alegre. O movimento foi criado após a ameaça de censura a essas exposições de arte e espetáculos teatrais sob acusações de incentivo ao abuso sexual de crianças.

Logo após o caso de Meshiacha, a FNCC organizou um protesto na Câmara Municipal de Belo Horizonte em apoio ao fotógrafo. Os manifestantes, em grande parte homens, usaram saias para protestar contra os argumentos dos parlamentares.

Gil Sotero/Reprodução Facebook

No dia 5 de setembro de 2018, Pat Caetano publicou uma nova foto em suas redes sociais atualizando a situação de seu mural na Praça da Liberdade.

Por: Bruno Garofalo, Daniel Daher, Felippe Fernandes e Luiz Augusto Barros

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