A brincadeira de roubar um gol

Lucas Felix Novaes
Linha20
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6 min readNov 27, 2020
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Em “As veias abertas da América Latina”, Galeano retrata o por quê de sermos como somos. No clássico livro, o escritor uruguaio deixa clara as mazelas que nos tornaram tão explorados e como aos montes, roubaram toda a nossa identidade e nos enfiaram goela abaixo um eurocentrismo bizarro. No prefácio de uma edição mais recente, o autor lamenta que a colonização ainda siga existindo.

“A história não quer se repetir — o amanhã não quer ser outro nome do hoje -, mas a obrigamos a se converter em um destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia”

Galeano discorre sobre o fato de que, na nossa história, fomos sempre acostumados a perder, a aceitar o que ocorria e torcer para o menos pior, visto que não tínhamos alternativa, que seguimos e provavelmente vamos seguir a ser um refugo que vive fazendo concessões ao capital estrangeiro, com elites cada vez mais conformadas com o papel de subserviência que as faz permanecer no topo e com a expectativa de que o continente nunca conseguirá se desenvolver por si próprio.

Seria incrível ter um herói que conseguisse pelo menos por um momento, chutar a bunda de quem tanto nos oprime e rouba, que por um segundinho, usasse sua idolatria para os menos favorecidos e que apoiasse os movimentos que realmente lutaram por uma América Latina livre, que em um instante, fizesse toda a dor por mais uma vez ter seu país roubado pelos europeus, pelas mortes de guerra e pelas injustiças que seu povo sofria após um longo período de ditadura parar.

Que permitisse ao seu povo sonhar.

E tivemos.

A maioria das pessoas se refere à Diego como alguém com um legado complicado, pelos problemas fora de campo, pelo uso de drogas, e pelas supostas agressões à mulheres. Eu imagino que deve ser difícil para quem vê a morte como uma espécie de juízo final, onde as ações são decretadas com base no próprio nariz, e uma sentença sem sentido é dada, para que depois do tribunal virtual efetivamente “julgar”, possamos nos permitir sofrer pela morte de alguém. É difícil aceitar que os humanos erram e daí surge a contradição tão dolorosa nos dias atuais, pois ao mesmo tempo, ninguém quer ser insensível ao ponto de não chorar pela morte de uma pessoa tão significativa. Afinal, é possível mudar? Os erros podem ser perdoados? As ações boas anulam os vacilos? Dá pra saber que alguém está sendo autêntico e não simplesmente querendo usar a mídia para mostrar que supostamente evoluiu? O legado é complicado pra quem enxerga as pessoas como totalidades, para quem tenta encaixar cada um em uma caixinha de acertos e defeitos, e não na complexidade que nos faz únicos.

“Afinal de contas, julgá-lo era fácil, e era fácil condená-lo, mas não era tão fácil esquecer que Maradona vinha cometendo há anos o pecado de ser o melhor, o delito de denunciar de viva voz as coisas que o poder manda calar e o crime de jogar com a conhota (…) que significa o contrário de como se deve fazer”

O roteiro parece clichê de sessão da tarde. Se não tivesse acontecido, alguém falaria que era brega e forçado. Após a guerra das Malvinas, onde a Inglaterra de Thatcher reconquistou o território argentino, os ânimos entre os dois países fervia. É natural pensar no acontecimento como uma repetição da exploração abordada por Galeano, e de como mesmo lutando, não conseguimos vencer. Diego pensava assim também, e a respeito da copa de 1986, Maradona disse:

“Em 1986, vencer aquele jogo contra a Inglaterra era o suficiente. Vencer a Copa do Mundo era secundário para nós. Bater a Inglaterra era nosso verdadeiro objetivo”

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A Argentina venceu a partida válida pelas quartas de final do torneio por 2 x 1, com dois gols de Maradona. E santos gols… O primeiro, talvez o mais antológico gol da história do futebol. Num lance em que disputou a bola com o goleiro, Diego mandou pra rede com as mãos. Depois da partida, Maradona disse que foi “la mano de dios”, com o humor e a malandragem características. No segundo, Maradona recebeu a bola antes de meio do campo e costurou a defesa inglesa, passando por todos os marcadores para fazer um golaço. Ali, claramente lavou a alma argentina com o gol mais bonito da história das copas, e com o maior gol da história do futebol. Sobre o gol de mão, marcado em cima de Peter Shilton. Diego disse:

“O gol com a mão, o povo diz:

Bem feito para os ingleses por isso e aquilo.

Mas para mim, foi como se tivesse roubado a carteira de um inglês, para mim era isso, a brincadeira de roubar um gol”

A carreira de Maradona para quem se atém aos números, pode não se comparar aos grandes nomes da história do futebol. Mas será que dá a dimensão do que ele foi?

Numa época em que o sucesso e os títulos eram delegados aos times de Milão e à Juventus, conduziu a equipe do sul da Itália ao seu primeiro título italiano. Enquanto os clubes de Milão investiam alto em holandeses e alemães e que o futebol italiano era o centro do mundo, craques como Platini, Matthäus, Van Basten e Baggio não foram capazes de derrotar a equipe de Nápoles. Diego chutava mais bundas e por anos, deu o sabor da vitória para mais um povo que acreditava ter sua trajetória fadada às derrotas.

Diego Maradona não era Diego fora e Maradona dentro dos gramados, não dá pra dividir o mundo em dois e traçar uma régua imaginária contemplando o que concorda ou não em alguém. Não dá pra separar e fingir que as pessoas não são o que são. Se você o via assim, não entendeu nada do que ele queria transmitir. Não dá pra querer desvencilhar um do outro, o driblador genial, herói de um país, chegou nesse patamar também por ser polêmico, afinal, como bem disse Douglas Ceconello, queiram um Maradona domado e terão um Inglaterra 1 x 0 Argentina em 1986.

Diego, curiosamente faleceu no mesmo dia em que Fidel.

É difícil pra mim escrever isso e saber que aquele 0,1% de chances que eu mantinha viva, de vê-lo e falar tudo o que significou pra mim, se tornou 0. É ruim viver num mundo sem a originalidade do Diego, o cara que defende a américa das investidas imperialistas, que defendeu Cuba, Venezuela e Brasil publicamente, o homem que denunciou os ataques genocidas da era Bush, que peitou a FIFA, e que se orgulha de sua história e da sua gente. Maradona foi intenso, imperfeito, incrível, herói e vilão. 60 anos talvez tenha sido pouco, como teriam sido 70, 80, o quanto a vida permitisse. Fico feliz em ver que viveu intensamente, a dor maior é pela tristeza da sua falta e pelo vácuo que vai ecoar pra sempre.

Diego foi o maior do futebol, seja lá o que isso signifique.

Ps: Para você que assim como eu está triste com a morte do Maradona, assista esse vídeo. Garanto que fará seu dia mais feliz.

Não existe vídeo perfe…

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Lucas Felix Novaes
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Psicólogo Clínico, pesquisador e amante da rede do antigo maracanã.