Ted Lasso: a ferida aberta da ausência paterna

Lucas Felix Novaes
Linha20
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9 min readJan 2, 2024

Ted Lasso é uma série que retrata a história de um treinador de futebol americano que é contratado para treinar um time de futebol na Inglaterra, mesmo sem ter experiência prévia no esporte. Com um bom humor contagiante e um otimismo surpreendente, Ted Lasso enfrenta os desafios da vida e do esporte, deixando uma mensagem inspiradora sobre lidar com as adversidades e encontrar soluções para os problemas.

A máscara do otimismo: evitando contato com as próprias dores

Trazendo a minha experiência como espectador, o primeiro impacto causado pela série se dá pelos créditos iniciais. Na cena de abertura, o protagonista percorre uma fileira de assentos vazios no estádio. Ao se sentar, sua presença transforma a cor de sua cadeira e das pessoas ao seu redor. Parece ser um indicativo da personalidade de Ted demonstrada de forma “subliminar”.

A série aborda temas como paternidade, superação pessoal e trabalho em equipe, enquanto nos mostra a jornada de Ted e como ele consegue conquistar o coração dos jogadores e da comunidade ao redor do time. Os temas abordados na série já são mais do que o suficiente para chamar a atenção dos amantes do futebol. A combinação incomum entre o futebol americano e o nosso, atrai a curiosidade, mas o que faz você se manter acompanhando a série é muito mais do que isso.

Quando Ted chega ao AFC Richmond é apresentado à alguns desafios: o time sem tradição, a desconfiança de todas as pessoas em sã consciência, uma vez que, nunca havia treinado no esporte e um vestiário quebrado por uma estrela em ascensão.

Lasso, ao reconhecer que não possui todas as qualificações necessárias para o cargo, busca ajuda e ouve as pessoas ao seu redor para criar um ambiente propício para o desenvolvimento do trabalho. Em essência, o treinador oferece uma alternativa à masculinidade tóxica, mesmo em um ambiente conhecido justamente por sua toxicidade.

Ted busca mostrar essa alternativa por meio de uma liderança que tem como papel principal encorajar seus jogadores a serem sempre melhores, cuidarem de sua saúde mental e demonstrarem gentileza e preocupação com o próximo. Ele não recorre à violência ou agressividade para resolver conflitos, mas sim motiva e potencializa seus jogadores para que se tornem suas melhores versões.

Ted Lasso é otimista, motivador e acredita na importância de levar em consideração os sentimentos. Ele ensina que vencer nem sempre é o mais importante, e seu lema “Believe” reflete sua crença no potencial de cada componente do clube. Para mim, isso fica evidente no episódio em que passa um dia com o jornalista Trent Crimm, em que este, chega a chamá-lo de “irresponsável” pela forma com que lida com os resultados da equipe.

A construção do protagonista no início da série é focada em apresentá-lo como uma pessoa extremamente positiva, algo que, a princípio, soa até irritante. Ted aposta na gentileza para alcançar seus objetivos e, por isso, somos levados a acreditar que já sabemos tudo a respeito desse personagem: ele é uma caricatura de um americano idiota que não entende nada de futebol.

No entanto, ao longo da primeira temporada, vemos mais da intimidade do técnico. Na regra do “todo excesso esconde uma falta”, podemos entender que o otimismo e a gentileza demonstrados por ele, que vive buscando equilibrar os problemas pessoais com as dificuldades do seu dia a dia em um esporte que não conhece, são uma forma de conseguir cativar todos ao seu redor.

É como se, ao evitar contato com os problemas e vivenciar uma realidade parcial em que quanto menos se fala, menos dói, Ted estivesse protegido de tocar nas suas próprias feridas paternas. Desta maneira, ao longo da primeira temporada, acompanhamos Ted Lasso visivelmente quebrado em função do fim do seu casamento. Entretanto, ele constrói na opinião geral dos comandados e da diretoria, a visão de uma pessoa responsável, madura e emocional.

A minha ideia, não é dizer que as gentilezas de Ted não existem, mas sim, notar que as atitudes bacanas dele, tem mais relação com a forma como lida com os outros do que com seu cuidado consigo mesmo. Percebemos a partir daí, que ele vai usando esse bom humor como uma máscara para não lidar de frente com sentimentos de ódio, raiva e frustração.

A primeira vez que o técnico se permite largar essa máscara e entrar em contato com a sua realidade material acontece na visita do Richmond à Liverpool, para a partida contra o Everton. Na história, a equipe de Londres não vence os rivais há décadas fora de casa e coincidentemente, isso acontece justamente quando ele recebe os papéis do divórcio. No mesmo episódio vemos Ted ser grosseiro com Nate, ter uma crise de ansiedade e finalmente assinar a papelada. É de fato um dos primeiros momentos em que notamos que por trás dos sorrisos, piadas bobas e otimismo, existe um homem. Um homem perdido pela separação, pela saudade do filho e pela perda traumática do pai, abordada na segunda temporada.

Desconstruindo o otimismo exagerado

Se na primeira temporada, vemos Ted esconder seus sentimentos sob a máscara do otimismo, na segunda, o vemos sendo colocado diante de seus maiores medos e traumas. A temporada começa com o impacto causado na comunidade pela triste morte do mascote do time, o que leva à contratação da terapeuta esportiva Dra. Sharon.

Acompanhamos então, a dificuldade que ele tem em perceber que a psicóloga contratada pelo time está conseguindo fazer com que os atletas repensem suas atitudes perante aos colegas de equipe. Com isso, notamos o claro incômodo causado pelo fato do técnico perceber que o clube não gira em torno das suas ações.

Surge um dos grandes problemas do protagonista: focar em si mesmo. Quando as pessoas não precisam recorrer à Ted para resolver suas dificuldades, há uma lacuna que precisa — quase que obrigatoriamente — ser preenchida pelo autocuidado e pela introspecção.

Ted deixa visível sua maior dificuldade, algo que carrega consigo de forma quase intrínseca: não ser capaz de falar sobre si mesmo com profundidade. Portanto, suas maiores qualidades tornam-se uma forma de evitar contato com as suas maiores dores. Por isso, mesmo resistindo no início, quando sua ansiedade piora, ele finalmente busca ajuda.

Nesse momento, surgem as contradições do personagem, afinal, a psicoterapia envolve um processo de introspecção e contato com emoções e pensamentos desconfortáveis. Infelizmente, as suas atitudes vão de encontro a esse conceito, já que ele tende a ignorar experiências negativas e encontrar o lado positivo em tudo. Isso leva a uma dificuldade tremenda em continuar o processo.

Embora Ted tenha decidido fazer terapia, ele inicialmente tem dificuldade em se abrir com Sharon. Na primeira sessão, ele sai rapidamente. Na segunda sessão, critica o caráter e o trabalho da terapeuta, afirmando que eles só se importam com os pacientes porque estão sendo pagos. Essas atitudes inesperadas refletem a desconfiança e a resistência do treinador, assim como a de muitas pessoas, em buscar ajuda para lidar com conflitos e questões emocionais.

Então, à medida que constrói uma relação de confiança com a Dra. Sharon, ele revela que seu pai cometeu suicídio quando ele tinha 16 anos. Esse evento traumático serviu como um gatilho para os ataques de pânico que enfrenta. Ele foi o responsável por encontrar o corpo do pai, chamar a polícia e informar a mãe sobre a tragédia. Desde então, Ted lida com a incompreensão sobre o motivo que levou seu pai a “desistir” de si mesmo e da família.

Como resultado do suicídio do pai, Ted desenvolveu uma preocupação constante com os outros e se coloca à disposição de todos, independentemente das dificuldades que esteja enfrentando. Além disso, ter contato com tudo isso no momento em que se divorcia, também pode mostrar que há uma relação entre esse luto não elaborado e a dificuldade em aceitar o término do seu casamento. Em suma, como aceitar a dor pelo fim das duas famílias que construiu ao longo da vida?

Futebol, masculinidade e afetos: Paralelos entre Ted e mim

No centro da sala,
Diante da mesa,
No fundo do prato,
Comida e tristeza.
A gente se olha,
Se toca e se cala
E se desentende
No instante em que fala.

Belchior — Na hora do almoço

Um dos motivos que me fizeram escrever esse texto se dá pelo fato de ao longo das temporadas me enxergar no Ted. Me vejo no Ted pois assim como ele, também tenho uma relação ambivalente com o meu pai. O meu contato com ele sempre foi frio, ausente de afeto e com pouca intimidade. Nossos momentos de demonstração de carinho sempre estiveram ligados ao futebol.

No período da adolescência, senti meu pai ainda mais distante. Ele era meu professor e havia da parte dele uma preocupação em separar o professor do pai nos momentos em que estávamos na escola. Porém, essa realidade perpassou a sala de aula, éramos dois desconhecidos que habitavam o mesmo espaço físico — fator esse que minha analista me ajudou a nomear de ausência de presença — mas não eram próximos.

Muitos estudos sobre futebol destacam a importância do esporte na construção da identidade nacional. Esse jogo, além de ser uma prática esportiva popular, desempenha um papel significativo na sociedade brasileira e em todo o Ocidente. Ao longo da história, o futebol foi utilizado como uma ferramenta para sustentar regimes ditatoriais, servindo não apenas como entretenimento, mas também como meio de comunicação de massa.

O esporte se tornou uma plataforma para transmitir ideologias e valores, influenciando a opinião pública e fortalecendo o poder estabelecido. Assim, o futebol não pode ser considerado apenas como um jogo, mas como um fenômeno cultural complexo que reflete e molda a identidade nacional.

É importante compreender então, que esse espetáculo vai além da simples apreciação esportiva. Ele se torna um campo de expressão no qual o torcedor se envolve emocional e fisicamente, como se sua participação ativa, mesmo que apenas através do sofrimento visceral, pudesse influenciar o desempenho do time.

O jogo desempenha um papel significativo na demonstração de afeto nas famílias. No Brasil, em especial, é uma das principais formas de expressão de amor e conexão emocional entre pais e filhos. O futebol transcende a simples apreciação esportiva e se torna um campo onde as emoções são vivenciadas e compartilhadas de forma intensa.

Para muitos pais, transmitir o amor pelo futebol para seus filhos é uma maneira de estabelecer um vínculo especial. Assistir a partidas juntos, torcer pelo mesmo time e compartilhar as emoções que o esporte proporciona fortalecem os laços familiares. O jogo se torna um ponto de conexão, um interesse comum que pode aproximar pais e filhos.

Voltando ao protagonista quando questionado por Sharon sobre uma lembrança positiva de seu pai, Ted recorre ao momento em que, ainda criança, não estudou para uma prova, e o pai, passou a noite em claro lendo um livro para ajudá-lo no dia seguinte. Embora seja um momento bonito e repleto de afeto, me fez refletir a respeito de um aspecto que me atingiu e que acredito atingir grande parte dos homens: A ausência dos pais na adolescência. Num momento de extrema importância na constituição subjetiva de um sujeito, o pai desaparece.

A partir de mais uma lacuna em sua experiência, é como se Ted usasse o esporte para se juntar. A dor pela família que acabou após o suicídio do pai, fica de lado quando ele se junta com outras pessoas. Nesse movimento em que ele cria espaços solidários e agradáveis, Ted não se junta só com o outro, mas também consigo mesmo. Como se buscasse situações em que, ainda que por um momento, sentisse que os seus pedaços, dilacerados pela perda de um ideal familiar, estão todos juntos: o pedaço representado pela morte do pai, o pedaço que ficou com o distanciamento da mãe, o pedaço que está com a ex esposa e o filho. Ele só consegue juntar seus pedaços quando está com muitas pessoas ao seu redor, cada uma muito diferente da outra.

O vazio de uma relação não construída é muito potente. É como se ao mesmo tempo, fôssemos colocados lado a lado com aquilo que mais nos entristece e faz duvidar da nossa força. Nos faz duvidar se realmente temos um rede de apoio, da força dos vínculos construídos e supervalorizar as interferências que a ausência de presença traz na constituição do que entendemos como Eu.

Consequentemente, o futebol, passa a ser para Ted, um cenário perfeito, uma forma de construir relações complexas com outros homens, algo que foi impossível de acontecer com o seu pai. Uma maneira de reunir no mesmo lugar, todos os pedaços que faltam para construir seu próprio Eu.

Quem não tem uma presença paterna, sente a dor do Ted. As feridas doem dia após dia, até que um dia você não se lembra mais. Não quer dizer que está tudo resolvido ou que você tenha processado todas as perdas subjetivas envolvidas nesse processo, mas sim, que mais uma vez, você deu um jeito de lidar com as suas próprias questões. Mas, devemos perceber, assim como Ted, que colocar uma máscara de felicidade irrestrita, de nada contribui no nosso processo de elaboração. Por mais que seja nobre e muitas vezes necessário cuidar dos que estão à nossa volta, talvez, o caminho mais proveitoso seja o de aceitar nossas mágoas, nosso ódio e nossas dores, elaborar o luto daquilo que não foi possível viver e concentrar a nossa força no que está ao nosso alcance.

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Lucas Felix Novaes
Linha20
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Psicólogo Clínico, pesquisador e amante da rede do antigo maracanã.