Histórias de Albertina

Clarice Nascimento
Linhagem
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5 min readJun 19, 2019

Era começo de tarde quando cheguei na praia de Mundaú, no município de Trairi. Entro pelos pequenos portões da pousada Coração de Mãe e encontro ali a nossa entrevistada. Com uma tiara de renda nos cabelos, me recebe com um abraço, pergunta pela família e me convida a sentar. A partir daí, a conversa flui como as águas do mar.

Albertina Roque de Holanda, 85, nasceu no distrito Sítio São José, às margens do rio Mundaú, mas criou raízes na praia de Mundaú, no município de Trairi, a 137 quilômetros de Fortaleza. A cidade interiorana tem a renda de bilro como uma forte característica, por isso ganhou o título de “Terra da renda de bilro no Ceará”. Apesar da falta de referências bibliográficas de registros históricos, acredita-se que a renda tenha chegado no município através das mulheres portuguesas. Grande parte do litoral cearense, saindo de Mundaú até Acaraú, é composto por renda. Num final de tarde, é possível encontrar várias mulheres fazendo renda.

Albertina diz que aprendeu a fazer a renda aos 7 anos com a irmã, Maria, falecida no ano de 2018 com 100 anos completos, e a mãe, Ana Francisca. Antigamente, as rendas feitas por ela e a irmã eram vendidas pela mãe em Fortaleza. Ana Francisca ia a pé, pelo caminho da praia, até a capital cearense. Aos 9 anos, saiu do distrito de Itapipoca e mudou-se para a praia de Mundaú com a família. Desde então, não parou de rendar.

“Às vezes, eu [até] passo uns meses sem pegar nas minhas almofadas mas eu vou lá bato a poeira, dou uns trocadinhos e guardo de novo. É assim, eu gosto muito da renda”, diz a rendeira com um sorriso no rosto.

Casada, com um filho e três netos, divide seu tempo entre cuidar do marido adoentado, servir aos doentes da Igreja por meio da Eucaristia, comandar a Pousada Coração de Mãe e fazer renda. Além disso, comanda há 5 anos a Associação de Rendeiras e Bordadeiras de Trairi. A associação já teve parcerias de sucesso, como o SESC Iparana e a Central de Artesanato do Estado do Ceará , CEART. Contudo, o grupo vêm se desorganizando pela falta de incentivo e de demandas de trabalho. Segundo Albertina, elas confeccionavam diversos produtos como caminhos de mesa, centros de mesa, colchas grandes de cama e roupas. Tinha um retorno financeiro positivo, principalmente com a parceria da CEART de encomenda e revenda das peças. Porém, isso tudo têm se transformado de alguns anos pra cá.

“A gente recebe as encomendas e faz. Às vezes a gente não tem nem encomenda mas quando a gente vê um desenho bonito de uma blusa bonita a gente faz e às vezes vende. tem vezes que não vende não.”

A renda de bilro é feita em cima de uma almofada, com uso de alfinetes e para coordenar o trabalho / Foto: Ana Clarice

Mesmo com essas dificuldades encontradas no entrelaçar das linhas, Albertina tem vontade que a vida voltasse a ser como era antes, que a renda voltasse a ser valorizada pelas mulheres artesãs e pela sociedade. “Eu tenho tanta vontade […] que essa revenda de renda voltasse. Não por mim mas pelas meninas que trabalham porque tem mulheres aqui que não tem emprego e as rendas ajudavam muito. […] Antigamente, tinha pessoas que se sustentavam com a renda, os maridos iam pro mar [pescar] e elas ficavam fazendo a renda e a dona Sinhá comprava [e com esse dinheiro] dava pra comprar farinha, rapadura, no tempo as coisas eram mais barata, e elas se sustentavam [assim] enquanto os maridos não chegavam. Hoje não tem mais isso, não tem mais quem compre. As meninas passam de porta em porta tentando vender a rendas”, afirma a artesã. Ainda assim, ela acredita numa mudança.

“Eu tinha muita vontade que um dia abrisse assim um caminho que tivesse aonde vender, que mesmo que eu não pudesse ir mas tem outras rendeiras que são mais ativas e que eu ia até segurada nos braços delas.”

Com tanta história e ricos conhecimentos, a rendeira Albertina ficou conhecida nacionalmente pelo seu trabalho. Já viajou Brasil afora, de ônibus e de avião. Já participou de um desfile em São Paulo e também já foi para Brasília. Todo esse conhecimento também já foi espalhado pelo mundo. Segundo a artesã, já ensinou para três mulheres trairienses que levaram a arte da renda de bilro para o exterior. “Eu já repassei pra muitas pessoas, não tem mais pessoas que sabem porque não querem mas se quisessem eu estou aqui. Não tô muito bem da minha vista mas dá pra eu ensinar”, afirma Albertina.

Nos planos do futuro, não existe possibilidade de parar com a renda. Mesmo com outros trabalhos a fazer, a rendeira diz que: “enquanto eu viver e a minha vista enxergar eu vou fazer, eu gosto e não paro não”.

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Clarice Nascimento
Linhagem

21. Cearense, completamente escorpiana, sincera, determinada e pé no chão. Amante de livros, chocolate e praia. Escreve sobre esportes e cultura