As assembleias digitais passaram a ser uma alternativa possível para as empresas. E agora?

Equipe Linte
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8 min readApr 22, 2020

Por Gabriela Ponte Machado, Advogada no Coletivo.adv.br

A partir do advento da atual pandemia do COVID-19, houve uma grande dúvida, por parte das empresas, a respeito de como concluir a contento a auditoria das demonstrações financeiras do exercício social encerrado em 2019, submeter as contas à análise do conselho de administração e encaminhar a proposta da administração e as contas para aprovação dos sócios ou acionistas dentro do prazo previsto em lei. Mais ainda, como promover a reunião de sócios ou assembleia ordinária na sede da sociedade em meio à pandemia, expondo os acionistas e colaboradores do conclave ao risco de contágio?

É verdade que a ss (Lei n.º 6.404, de 15 de dezembro de 1976), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 12.431, já previa a possibilidade de participação e voto à distância nas companhias abertas de acordo com a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários — CVM. Como resultado de tal alteração legislativa, em 2015, a CVM emitiu a Instrução n.º 561, que alterou a Instrução n.º 481, que trata de informações, pedidos públicos de procuração, participação e votação à distância em assembleias de acionistas.

Vale observar que tal regulamentação é aplicável exclusivamente às companhias abertas registradas na categoria A e cujas ações estejam autorizadas para negociação em bolsa de valores. A CVM, portanto, determinou que tais companhias seriam:

1Obrigadas a permitir o voto à distância em assembleias gerais ordinárias, em assembleias para eleição de membros do conselho fiscal e do conselho de administração em assembleias gerais extraordinárias que ocorram na mesma data das assembleias gerais ordinárias; e

2facultadas a utilizar um sistema eletrônico de votação.

Foto: Gabriel Benois no Unsplash. Editada por Leonardo Ohnuma.

Desde que tal regulamentação foi implementada, as companhias abertas passaram a implementar e viabilizar o voto à distância, que se tornou uma realidade recorrente no cotidiano das mesmas, não apenas nos conclaves obrigatórios, mas também em outras assembleias. Na modalidade de voto à distância, os acionistas devem enviar suas manifestações de voto previamente à realização do conclave, sem sua efetiva participação na assembleia geral em questão.

Em contraste, o sistema eletrônico de votação facultativa, com a efetiva participação e votação à distância dos acionistas não foi adotado, na prática, pelas companhias, tornando-se apenas uma possibilidade prevista na regulamentação que nunca havia virado realidade. Até agora.

Como já comentado, o advento da pandemia acelerou como nunca o processo de viabilização de assembleia geral e reunião de acionistas para que sejam realizadas virtualmente. Foi submetida à votação, pelo Congresso Nacional, a Medida Provisória n.º 931, que altera dispositivos do Código Civil e da Lei das Sociedades por Ações de modo a, dentre outras:

(i) estender o prazo para a realização das reuniões de sócios e assembleias gerais ordinárias que devem deliberar sobre as contas da sociedade e propostas da administração para até sete meses contados do final do ano de 2019; e

(ii)permitir que as reuniões de sócios e assembleias gerais sejam realizadas de forma integralmente virtual, de forma que os acionistas possam votar e participar à distância dos conclaves.

Em 17 de abril de 2020, para regulamentar a participação e votação à distância nas assembleias gerais as companhias emissoras de valores mobiliários, a CVM editou a Instrução n.º 662, introduzindo alterações à Instrução CVM n.º 481. Para os demais tipos societários, em 14 de abril de 2020, o Departamento de Registro Empresarial e Integração do Ministério da Economia — DREI editou a Instrução Normativa n.º 79.

Ambos os reguladores preveem que as reuniões e assembleias podem ser realizadas de forma semipresencial ou inteiramente digital, conforme estipulado pela sociedade no aviso de convocação. Na assembleia semipresencial, os participantes poderão optar em participar presencialmente na sede da companhia ou digitalmente, e, na assembleia digital, não haverá a possibilidade de comparecimento presencial, devendo a participação e votação de todos os sócios e acionistas ser realizada integralmente via digital, ficando sempre facultado ao acionista o envio do boletim de voto à distância.

Tanto o DREI quanto a CVM fazem exigências bastante similares para a realização da reunião ou assembleia, sejam parcial ou totalmente digitais, devendo a sociedade assegurar:

1a segurança, a confiabilidade e a transparência do conclave;

2o registro de presença dos sócios, acionistas ou associados;

3a preservação do direito de participação à distância do acionista, sócio ou associado durante todo o conclave;

4o exercício do direito de voto à distância por parte do acionista, sócio associado, bem como o seu respectivo registro;

5a possibilidade de visualização de documentos apresentados durante o conclave;

6a possibilidade de a mesa receber manifestações escritas dos acionistas, sócios ou associados;

7a gravação integral do conclave, que ficará arquivada na sede da sociedade; e

8a participação de administradores, pessoas autorizadas a participar do conclave e pessoas cuja participação seja obrigatória.

Foto: visuals no Unsplash. Editada por Leonardo Ohnuma.

Ambos os reguladores também tem dispositivo similares no sentido de prever que a sociedade deve adotar sistema e tecnologia acessíveis para que todos os acionistas, sócios ou associados participem e votem à distância na assembleia ou reunião. A regulamentação do DREI determina que as sociedades podem contratar terceiros para administrar, em seu nome, o processamento das informações nas assembleias e reuniões.

Vale destacar que nenhum dos reguladores estipula quais são os detalhes dos sistemas digitais que devem ser utilizados para garantir a segurança da informação, quais são os instrumentos mínimos e tecnologias de acesso à assembleia ou reunião, formas de criptografia ou autenticação de dados.

Além disso, provavelmente em decorrência de pressões por parte dos empresários, já que o texto não constava da minuta inicial da instrução, o DREI incluiu o seguinte texto a respeito da responsabilidade das sociedades: “A sociedade não poderá ser responsabilizada por problemas decorrentes dos equipamentos de informática ou da conexão à rede mundial de computadores dos acionistas, sócios ou associados, assim como por quaisquer outras situações que não estejam sob o seu controle”.

Nota-se que, ao contrário da norma do DREI, a Instrução CVM n.º 662 não contempla dispositivo similar de isenção de responsabilidade. No relatório da audiência pública da instrução, a CVM mencionou que: “A CVM entende, contudo, que problemas técnicos podem ter naturezas e extensões variadas, não sendo sequer possível, portanto, regular, em normativo, soluções para problemas como os suscitados nos comentários. Em situações em que o sistema eletrônico apresentar algum tipo de problema, caberá à companhia adotar medidas razoáveis para a continuidade da reunião, o que não pode, por outro lado, ser interpretado como uma isenção de responsabilidade caso as providências adotadas para remediar os problemas sejam consideradas incompatíveis. Ressalte-se que o dever dos administradores deve ser analisado à luz do dever de diligência previsto na Lei 6.404, de 1976” (grifei).

Neste sentido, vale ressaltar que o direito ao voto não pode ser, de nenhuma forma, limitado ou restrito, especialmente por uma regulamentação infralegal de órgão regulador do Poder Executivo.

Além disso, dentro do contexto digital, é bastante vago enumerar todas as situações que estariam fora do controle da sociedade e que poderiam prejudicar o exercício do direito de voto do sócio, conforme previsto na norma do DREI. O dispositivo infralegal, portanto, não garante às sociedades segurança de que o conclave não poderá ser questionado pelo sócio ou acionista que tiver problemas técnicos na votação, porque a norma — pela sua própria natureza infralegal — pode ser questionada por ser contrária a um direito indisponível previsto na Lei das Sociedades por Ações, e, ainda que não seja questionada por esse motivo, teria que restar provado pela sociedade que o problema em questão estava absolutamente fora do seu controle.

Portanto, recomenda-se que, caso qualquer sócio ou acionista tenha problemas técnicos em sua participação e computação de seu voto no conclave, a assembleia ou reunião seja suspensa até que o problema seja solucionado, ou interrompida e adiada para nova data caso o problema não seja solucionado de forma a permitir a correta participação de tal sócio ou acionista. Caso qualquer sócio ou acionista tenha seu direito de participar e votar limitado e o conclave prossiga a despeito de tais dificuldades e sem a computação de seu voto, tal assembleia ou reunião poderá estar sujeita à anulação por tal acionista que teve seu direito de voto prejudicado.

A assembleia digital certamente se tornou uma realidade para as sociedades no Brasil e isso abrirá um enorme campo para empresas que queiram prestar serviços. Provavelmente serão criados sistemas de suporte sofisticadíssimos e outros mais simples já que cada sociedade tem perfil e necessidade distintos, de acordo com seu tipo societário, faturamento e quantidade de sócios e acionistas na sua base de participação societária.

Para as sociedades com uma quantidade menor de sócios e acionistas, cuja conexão de acesso à internet pelos mesmos seja simples e corriqueira, para os quais seja simples criar formas de acesso para votação eletrônica e cujos representantes sejam facilmente identificáveis e conhecidos da sociedade, estas conseguirão quase que imediatamente garantir as reuniões e assembleias integralmente digitais.

Por outro lado, questiona-se como viabilizar reuniões e assembleias digitais com altíssima multiplicidade de sócios, especialmente, nas companhias abertas com milhares de acionistas, sem gerar um potencial risco para a companhia? Como garantir que a conexão utilizada pelo acionista é segura e não será interrompida, corrompida ou invadida, que o acionista saberá manusear a ferramenta de acesso ao conclave, que o acionista terá dispositivo apropriado para ter acesso à ferramenta, que o áudio e o microfone estarão funcionando durante todo o tempo, que o acionista conseguirá efetivamente fazer sua manifestação de voto, que o acionista que acessar o sistema de voto eletrônico é efetivamente o acionista ou seu representante e que não é um terceiro que teve acesso à chave?

Nas companhias abertas com alta dispersão ou outros tipos societários que tenham uma quantidade grande de sócios ou acionistas existem obstáculos sistêmicos significativos para garantir a efetiva participação de todos à distância sem gerar exposição significativa ao risco de restringir, limitar ou prejudicar o pleno exercício do direito de voto por qualquer acionista ou sócio na reunião ou assembleia. Tal exposição pode, neste primeiro momento, inviabilizar a reunião ou assembleia integralmente digital.

Assim, abre-se um campo gigantesco, e, consequentemente, uma verdadeira corrida, para que empresas de tecnologia criem, aprimorem e tornem mais sofisticados softwares e sistemas para realização, elaboração de atas, assinatura e registro de presença que sejam suficientemente seguros, confiáveis, transparentes e fáceis para as sociedades e companhias.

São centenas de milhares de reuniões e assembleias realizadas anualmente por todas as sociedades existentes no País. Ou seja, é um pote de ouro no final do arco-íris para aqueles que tiverem êxito nessa empreitada.

Neste momento, ainda há algumas dúvidas e inseguranças, mas, sem a menor dúvida, abre-se mais uma enorme oportunidade para aqueles que tiverem visão de mercado e apetite para abraçar esse novo mundo.

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