A Verdade Inconveniente dos Carros Elétricos

Rita Prates
Lisboa Possível
Published in
8 min readMay 24, 2022

Durante décadas, as marcas de automóveis seduziram-nos com belíssimos anúncios. Anúncios que nos mostravam as linhas, a engenharia, a potência, de mãos dadas com a sensualidade e beleza intoxicantes, geralmente representada por aquele ator ou atriz que secretamente todos nós gostaríamos de ser. Por fim, comprar esse carro último modelo é o culminar desse desejo íntimo de realização pessoal e status.

Imagem retirada de um anúncio de carro a diesel.

Entretanto, vêm os cientistas dizer-nos que o carro convencional (a diesel ou gasolina) tem estado a afetar gravemente não só a nossa saúde, mas também a saúde do planeta. Do tubo de escape do nosso fiel amigo sai um cocktail tóxico com CO2 — responsável pelo aquecimento global — e outros compostos estranhos como nitratos, sulfatos, e partículas sólidas que atravessam os nossos pulmões e se infiltram nos nossos órgãos. Por fim, a última facada nas costas: o preço dos combustíveis.

As marcas de automóveis sempre souberam da verdade inconveniente dos carros convencionais, que tão bem conseguiram esconder em todos os anúncios. O problema é que agora toda a gente sabe, e o final feliz dos anúncios torna-se mais cinzento. E agora? Como continuar a vender carros? Como continuar a induzir nas pessoas este desejo permanente de adquirir o último modelo.

Felizmente chegaram os carros elétricos! Estes carros sim! Não há nenhum fumo tóxico que sai do tubo de escape, nem sequer fazem barulho. E a cereja no topo do bolo, é que ligar a tomada fica tão mais barato que encher o depósito.

Com o problema resolvido, as marcas de automóveis depressa nos bombardeiam com novos anúncios tão ou mais sedutores que os anteriores, pois os carros elétricos são o resultado da engenharia, sofisticação, mas sobretudo uma preocupação pelo futuro.

Imagem retirada de um anúncio de carro elétrico.

Mas mais uma vez, as marcas de automóveis encobrem a verdade inconveniente dos seus novos modelos. Os carros elétricos não são tão “limpos” quanto isso. A verdade é que há muita sujidade que fica escondida debaixo do tapete. Para percebermos o porquê, convido-vos a fazer uma pausa no anúncio, e ir espreitar de onde vêm estes carros elétricos.

Verdade Inconveniente Nº 1: Produzir Carros Elétricos é Muito Poluente

Segundo o relatório da Agência Europeia do Ambiente, a produção de um carro elétrico emite o dobro de CO2 que um carro convencional. No que toca a emissões de NOx (nitratos) SO2 (sulfatos) e partículas sólidas, para a produção dos veículos elétricos as emissões são 1,5 a 2 vezes superiores que as emissões na produção dos veículos convencionais. Irônico, quando os carros elétricos traziam promessas de ZERO emissões.

A Receita Para Fazer Um Carro

Para produzir um automóvel são precisos plásticos, borrachas, fibra de vidro, aço inoxidável, uma longa lista de outros metais, entre outros materiais. O resultado é uma máquina de cerca de uma a duas toneladas, que o ser humano de 80 kg usa para se deslocar. Cada um destes ingredientes foi extraído, processado e produzido em partes diferentes do mundo. Por fim, são transportados para as diferentes fábricas, para se transformarem em diferentes peças. Provavelmente o nosso carro tem acumuladas mais “milhas TAP” do que qualquer um de nós humanos.

Produzir duas toneladas de todos estes materiais polui. O plástico e o metal não crescem nas árvores. Os plásticos já sabemos que vêm do petróleo, e a sua produção é tão suja quanto podemos imaginar em uma refinaria. Mas vamos olhar mais de perto para os metais, dos quais conhecemos tão pouco, e que temos como bens adquiridos de acesso “fácil”. Os metais formam-se no interior da terra e por isso encontram-se misturados na rocha. Para os conseguirmos extrair precisamos de uma mina. E de repente a viagem ao centro da terra torna-se ainda mais sombria…

Todos os Metais são raros

Se fizerem uma revisão às vossas aulas de química, recordar-se-ão da tabela periódica e do grupo chamado “metais raros” (lantânio, lutécio, escândio e ítrio por exemplo). A verdade é que numa mina todos os metais são raros. À excepção do ferro, manganésio, titânio, alumínio (que podemos encontrar em grandes quantidades), os restantes metais encontram-se a concentrações de percentagem (%) e permilagem (‰). O que é que isto quer dizer?

Vejamos o lítio por exemplo, que apresenta taxas de extração 0,05–0,15%. Isto significa que eu preciso de extrair 2 ton de rocha para conseguir obter 1kg de lítio! No caso de metais preciosos como ouro, prata, platina, estamos em concentrações de bem menos de 1g de metal por tonelada de rocha extraída. E não se esqueçam que para extrair o nosso metal, é preciso furar a rocha e desfazê-la para que fique como farinha, o que requer enormes quantidades de energia. Por fim, depois de extrairmos o metal desta farinha, deixamos para trás literalmente uma montanha de resíduos rochosos com substâncias tóxicas como, por exemplo, arsênico e chumbo, assim como fossas gigantescas no lugar de belas montanhas.

Exemplo de uma mina de lítio na Austrália, um dos principais produtores mundiais, reportagem ABC News.

Agora que já fazemos uma pequena ideia de como é que obtêm os metais, vamos analisar quanto metal precisamos para um carro elétrico.

Verdade Inconveniente Nº2: o impacto na indústria mineira

Um carro elétrico precisa de cerca de seis vezes mais metais que um carro convencional. Um carro elétrico tem manganésio, cobre, lítio, cobalto, níquel, grafite, entre outros, e é muito mais “guloso” em metais que o carro convencional por causa da bateria e por causa dos circuitos elétricos. Exemplo: enquanto que o carro convencional precisa de cerca de 20kg de cobre, um carro elétrico precisa de 80kg de cobre! Quatro vezes mais. Sem esquecer que carro elétrico precisa de ser recarregado pois claro! Cada instalação de recarga de veículo elétrico precisa de cerca de 100kg de cobre. Claro que tudo isto vai depender da potência do carro elétrico. Quanto mais potente for o carro elétrico, mais “guloso” é em metais. A simpática e maneirinha Renault Zoé tem uma bateria com cerca de 300kg de metal, enquanto que o pomposo Audi e-tron tem uma bateria com 700kg de metal.

Quantas Montanhas de Resíduos Precisamos Para Ter Um Carro Elétrico?

Vamos olhar especificamente para o lítio. Dentro da bateria da Renault Zoé, temos cerca de 7kg de lítio. Fazendo as contas, para ter o lítio suficiente precisamos de extrair 14 toneladas de rocha! E nem sequer fizemos as contas aos restantes metais! A simpática Zoé esconde debaixo do tapete dezenas de toneladas de resíduos mineiros. Outro dado interessante é que se de repente todos os carros existentes fossem carros elétricos, não teríamos lítio suficiente na terra para tanta bateria. As indústrias automóveis sabem bem que com escassez de lítio e aumento da procura o preço do mesmo vai aumentar — e com ele o preço dos carros elétricos.

E uma comum bicicleta elétrica suja muito? Terá uma bateria de cerca de 2–3kg, com uma quantidade de lítio que não chega a 2% da totalidade da bateria, ou seja, 50g, menos de 1% daquilo que precisa um carro como Zoé.

Verdade Inconveniente Nº3: Carros Elétricos Apoiam a Exploração Infantil

Dentro da bateria da Zoé, temos também 11 kg de cobalto: 69% do cobalto vem das minas da República Democrática do Congo, com condições de trabalho indignas, exploração infantil e contaminações derivadas das minas, com consequências para a saúde das populações.

Exemplo de uma mina de cobalto na República Democrática do Congo (reportagem Skynews)

Verdade Inconveniente Nº4: Como é Produzida a Eletricidade?

Ligar a tomada é um gesto tão quotidiano, simples e limpo que nos parece inofensivo. Mas como é produzida esta elétricidade? Em 2022, as energias renováveis abasteciam cerca de 69% do consumo de elétricidade em Portugal. Os restantes 31%, são obtidos através da queima de combustiveis fósseis, como o gás natural. Já em muitos outros países Europeus, a % de combustiveis fósseis é muito superior… usando não só gás natural como o carvão. Quando a eletricidade é produzida por carvão ou gás natural, a promessa do carro elétrico cai mais uma vez por terra. As emissões não saem pelo tubo de escape, mas saem pelas chaminés das centrais elétricas, longe da vista para ninguém ver.

Elétrico ou Não Elétrico? Eis a Questão.

Os carros elétricos têm sido apresentados como a solução para os carros convencionais, quanto na verdade são uma alternativa menos má. A Carbone4, consultora especialista em alterações climáticas, defende que o carro elétrico só será menos poluente que o carro convencional, se utilizar eletricidade verde, e se for usado até pelo menos 30,000 a 40,000 km. Ao mesmo tempo, comprar um carro elétrico com baterias pesadíssimas tem tudo menos de ecológico. O que é consensual de todos os especialistas é que a utilização do carro como transporte privado é pura e simplesmente insustentável.

As verdades inconvenientes são muitas. O que vemos é um carro elétrico moderno e sem fumo, mas não conseguimos ver toda a indústria por detrás, e as consequências da extração mineira. Mas como diz o provérbio: “longe dos olhos, longe do coração”.

Em comum com o carro convencional, o carro elétrico também polui, também atropela, também provoca trânsito, também faz barulho: mas continua a dar-nos a sensação que somos aquele actor ou actriz do anúncio, e que ao comprar o carro elétrico estamos a salvar o futuro.

Referências:

· Relatório da Agência Europeia do Ambiente, 2018, ”Electric vehicles from life cycle and circular economy perspectives”.

· Izoard, 2020, “Non, la voiture électrique n’est pas écologique”, Reporterre.

· Agência Europeia do Ambiente, 2016, Electric vehicles will help the shift toward EU’s green transport future

· Putzer, 2022, “EV Car Batteries Destroy the Environment and Violate Human Rights, Motor Biscuit

· van Halm, 2022, “Concerns for mineral supply chain amid booming EV sales”, Mining Tehcnology.

· Entrevista a Aurore Stéphant, “L’effondrement : le point critique ?”, Thinkerview

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Rita Prates
Lisboa Possível

Olá! Sou a Rita, e sou apaixonada por sustentabilidade. Com o meu background de cientista, tento traduzir a informação difícil numa linguagem que todos percebam