Alternativas à ciclovia Almirante Reis: desde a sopa de macarrão ao compromisso.

Lispoeta | Лишь Поэт
Lisboa Possível

--

Uma obsessão de moda

Nada na história secular de Lisboa tem sido capaz de inspirar tanta obsessão pelo urbanismo como a Avenida Almirante Reis.

Lisboetas que nunca na vida se interessaram pelo planeamento da própria cidade começaram a partilhar livros sobre arquitetura, escrutinar a eficiência dos semáforos, calcular partículas poluentes no ar e organizar excursões dominicais aos Anjos para medir a largura dos passeios. Tudo isso em tempos livres entre manifestações, petições e debates fogosos no twitter.

Este fanatismo saudável resume-se a uma simples questão: haverá alternativa para a atual ciclovia Almirante Reis?

Tendo passado meses nos meandros dos desenhos técnicos, entrevistas com engenheiros e abundantes mitos urbanos, eis o que descobrimos.

A grande rivalidade

A Avenida Almirante Reis é uma menina que provoca muita rivalidade. Esconde no seu peito um antigo braço de água e portanto é plana, o que a torna tão fácil de — pois! — navegar. Todos querem cá passar: metro, autocarros, carros, bombeiros, ambulâncias, bicicletas, trotinetas, peões… e, o que nos vai complicar sempre o jogo de tetris urbanístico — o elétrico.

O elétrico

Imagem: Público

O elétrico tem uma infraestrutura rígida: os carris. Sim, podemos dizer adeus ao elétrico — e perder o meio mais romântico e não poluente da cidade. Podemos transladar os carris, mas isto tem um custo, embora se observamos bem as fotos históricas vamos descobrir que isto já foi feito: os carris foram deslocados do centro para os lados.

Ou podemos deixar tudo como está. Neste caso, se queremos uma ciclovia, não a podemos colar aos passeios, porque as bicicletas nunca devem entrar nas linhas dos carris, que são autênticas armadilhas mortais para os ciclistas (uma bicicleta para não cair precisa de balançar, o que é impossível dentro de um canal estreito de um carril).

O elétrico sempre vai condicionar todas as nossas escolhas.

Prioridades proféticas

Qualquer alteração que queiramos fazer à avenida acabará por ser profética, já que implica escolher qual transporte terá prioridade, e de consequência qual futuro de mobilidade terão os lisboetas.

Se queremos uma ciclovia e faixas prioritárias para elétricos e autocarros, o carro sai — já que a ciclovia e os carris não se podem misturar, e não há mais espaço. As ambulâncias, as VMERs e o INEM passariam imperiosos. As cargas e as descargas se encontrariam desinibidas. Mas já sabemos o que vai acontecer logo: os proprietários de carros privados irão às armas.

Se queremos aplacar o carro, começam as concessões:

  1. Zero ciclovias.
  2. Uma ciclovia que vagabundeia pelos bairros para evitar passar na avenida e incomodar o carro.
  3. Uma ciclovia direta, na avenida, ao lado do passeio. Neste caso podemos optar por uma bidirecional, abraçada a um dos passeios — ou então duas ciclovias unidirecionais, cada uma abraçada ao passeio do seu lado. Este desenho implicaria deslocar ou tirar os carris do elétrico.
  4. Uma ciclovia direta no centro da avenida, que deixa os carros, os elétricos e os autocarros a disputarem o espaço entre si a volta.
Imagem: Câmara Municipal de Lisboa

O curioso é que embora estas opções já estejam mais que estudadas, continuamos a dar-lhes mais voltas. Por isso vamos repassar outra vez a história da ciclovia e as alternativas propostas.

Alternativa 1: uma sopa de macarrão

A primeira tentativa de introduzir a bicicleta na avenida tem origem em 2014 — quando o projeto que humildemente pedia um “corredor” ciclável na Almirante Reis ganhou o orçamento participativo. Os técnicos da Câmara não demoraram em produzir um plano que claramente seguia a convicção: nunca chatear o carro. O mapa apresentado parecia uma sopa de macarrão que sugeria uma excursão exaustiva pelas ruelas secundárias dos bairros, no meio dos carros e evitando a todo custo passar pela avenida.

Imagem: Câmara Municipal de Lisboa, anúncio Knorr

Este plano foi chumbado por várias razões: por ter falhado em sugerir uma ciclovia direta e lacônica, ao que se chama uma ciclovia estruturante, mas também porque isto implicava tirar 150 lugares de estacionamento nas ruelas adjacentes! Não esqueçamos que o morador proprietário de carro é o pior pesadelo dos políticos!

Alternativa 2: a Baixa sem carros

A ambição também andou por aí.

Imagem: Câmara Municipal de Lisboa

A Avenida Almirante Reis serve de preliminar para quem quiser chegar à Baixa. A Câmara calculou que quase 70% dos carros que passam pela Almirante Reis não têm interesse nenhum em lá ficar: estão de passagem. Cortar a entrada na zona histórica da Baixa significaria fazer desaparecer o incentivo de ir até a Almirante Reis, reduzindo bruscamente o trânsito. Isto dava para um compromisso sonhado: uma ciclovia no meio, os elétricos e os autocarros desentupidos a misturar-se com só 30% dos carros.

Alternativa 3: o compromisso

Corre o ano de 2020. Entram o COVID e as eleições. Com o medo de provocar a possível ira dos comerciantes e proprietários de carros privados com direito a estacionamento, a Câmara recua e engaveta a ambição: não fecha a Baixa, mas mesmo assim avança com uma pop-up no meio, previsivelmente limitando o reino do carro privado, roubando-lhe a tradição de ficar estacionado em segunda fila e acalmando a velocidade.

Imagem: Lisboa Para as Pessoas

Isto acabou por dar mais segurança aos peões, deu mobilidade a mais de 10 500 ciclistas, e só estendeu o tempo de transição pela Avenida uns três minutos para os carros — o que foi suficiente para mais umas rondas de indignação de quem defende a prioridade do carro.

Alternativa 4: “é para acabar”

O slogan mais famoso das eleições autárquicas de 2021 foi “é para acabar” de autoria do então candidato a Presidente da Câmara Carlos Moedas. Tirar a ciclovia, daquilo que percebemos, significava devolver a avenida aos carros. Nunca se ouviu falar de uma faixa prioritária para os elétricos e os autocarros, da primazia do transporte público, já que isto poderia ter acabado com a tal tradição local de estacionar em segunda fila.

Ficou implícito que o elétrico e o autocarro deviam continuar a competir com o resto do trânsito, já que as pessoas que os usam são bem treinadas em não criar ilusões ou pedir mais.

Alternativa 5: “uma alternativa”

Dada a inesperada resistência dos lisboetas que, ao terem experimentado a ciclovia Almirante Reis, já não querem caminhar — melhor, pedalar! — para trás, agora já o Presidente da Câmara Carlos Moedas propõe encontrar “uma alternativa”. Vamos dar mais uma volta? Eis as opções que continuamos a ter:

  1. voltar a propor uma sopa de macarrão, abandonando a ideia de uma ciclovia estruturante, dando prioridade aos proprietários de carros privados — que voltarão a entupir as faixas com os seus veículos, provavelmente queixando-se que a avenida continua a ser um caos.
  2. colar a ciclovia aos passeios, suprimindo ou deslocando os carris do elétrico.
  3. deixar tudo como está.
  4. criar uma zona ZER na Baixa, desincentivando o trânsito para a Almirante Reis, convertendo a atual pop-up numa ciclovia.
  5. fechar a avenida aos carros privados e ter a ciclovia e as faixas para o transporte público.

Como acham que deveríamos sair deste círculo?

Podes apoiar Lisboa Possível e descobrir mais sobre aquilo que fazemos aqui, e se tens uma visão que gostavas que publicássemos, submete para quero@lisboapossivel.pt.

--

--