Paris: la vie en vert?

Diogo
Lisboa Possível
Published in
4 min readJul 6, 2022

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Salvador Dali no desfile de lingerie balnearia em Paris, 1965

…é o tipo de roupa que deixa mais nu do que estar nu.

– Angela Carter, The Bridled Sweeties, coleção Shaking a Leg

Imaginar como será, por fim, visitar uma cidade desconhecida tem o erotismo da lingerie: encantamo-nos com as rendas das expectativas que criamos, vemos mais do que ainda não vimos — tal como escreveu a Angela Carter.

De tantas vezes ter ido a Paris, e apesar da sua imensidão, para mim era já uma cidade muitas vezes despida, sem segredos. Mas aos poucos, voltou-me a seduzir, pelos finos bordados das notícias que prometiam uma nova Paris: feita de laços de ciclovias e curvas sensuais fechadas ao trânsito. Obra da estilista urbana Anne Hidalgo, presidente da Câmara de Paris e propulsora da mobilidade suave.

Fiquei seduzido, pois enquanto humano, e às vezes médico, menos mortes por atropelamentos e sinistros, menos pulmões intoxicados e maior igualdade, é, sem dúvida, uma afirmação clara de prioridades. Quis ir ver esta nova revolução, esta afirmação moderna da liberdade e igualdade.

E se havia cidade capaz de me iludir, era Paris.

O meu primeiro passo dado à altura do solo, mesmo à saída do metro, parecia a libertação das barricadas em Les Miserables. Uma ciclovia, segregada, segura e extremamente movimentada.

Mas, indo direto ao assunto, a revolução acabou nesta trincheira à porta daquela estação do metro, pois andasse eu o quanto andasse, passeava-me apenas por desilusões.

Sem rodeios nem eufemismos, em bom português curto e grosso, em Paris reina o absolutismo do carro. Durante os seis dias que por lá caminhei, estava outra vez em Portugal, com carros em todo lado, legais ou ilegais, no trânsito, parados em segunda fila, nos “seulement cinq minutes” em cima do passeio, das passadeiras e ciclovias.

O absolutismo automóvel: estacionados em passeios e ciclovias

As supostas trincheiras que impediriam os carros de circular nas ruas e no centro da cidade, afinal estão constantemente a ser adiadas, e as que há, são violadas por todas as exceções que também por Lisboa vemos, enchendo de carros as supostas ruas pedonais, que, claro, apenas lá estão para constantemente “levar e trazer velhinhas à missa e às consultas dos hospitais”.

(Supostas) ruas pedonais cheias de excepções para a circulação automóvel

E claro, lá como cá, os carros são os mesmos, tal como é a variável que se encontra entre o banco e o volante, que de variável nada tem, nesta sociedade que igualmente admira a masculinidade de empurrar um pedal e acelerar dos 0 a 200 km/h em segundos, como se algum mérito ou algo de bom nisso houvesse. Mas, tal como cá, devido à diretiva europeia, as bicicletas elétricas jamais podem superar os 25 km/h.

Automóveis estacionados nas passadeiras de Paris

Durante estes seis dias naquelas ruas não vi um único polícia ou fiscal a intervir, atuar ou até dissuadir as infrações dos carros. E por muito que possam existir multas automáticas, por radar, câmeras, etc, isso não remove carros dos passeios nem ressuscita peões atropelados.

Automóveis estacionados em cima das ciclovias parisienses

Vi o quão bonita esta Paris se pode vestir e vi bons exemplos, mas que por enquanto não passam de tiktoks de 15 segundos gravados na Rue du Rivoli ou nas margens do Sena: fora desse universo idílico a mobilidade suave não passa de um medicamento homeopático a lutar contra um cancro do pulmão.

Aos parisienses reconheço a coragem, a vontade de circular de bicicleta, mesmo sob tamanha desigualdade e insegurança. Mas, sei de cor o desfecho entre uma bicicleta ou peão a cumprir o código, quando levam com um enlatado “encandeado”, “distraído”, “despistado” ou “alcoolizado”, naquilo que os pasquins noticiam como “acidentes”, como se neles houvesse alguma imprevisibilidade.

Coragem parisiense

A maior prova de tudo que vos escrevo, foi que aterrei com uma reserva feita de aluguer de bicicleta, e, eu que em Lisboa em seis dias ciclo 100 km, que sou um adulto saudável, por medo, em Paris nunca levantei o aluguer.

Não basta apregoar a mobilidade suave nas cimeiras e comícios. Cumpramos a constituição, defendamos a igualdade e segurança, e quando estas existirem para os mais vulneráveis, nomeadamente através de infraestruturas, as cidades voltarão a vestir-se com lingerie.

E pudesse eu ser doutor das cidades, a Paris e Lisboa diagnosticaria a mesma doença. E na receita médica para a cura, ler-se-ia a seguinte prescrição:

  • Fiscalização rodoviária: 24/7
  • Fechar o centro da cidade aos carros: 24/7
  • Velocidade máxima: 30 km/h em toda a cidade
  • Passeios: largos, livres, de fácil acessibilidade
  • Ciclovias: segregadas, em todas as ruas

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