Porque é que o Carlos Moedas decidiu recuar na avenida Almirante Reis?

Lispoeta | Лишь Поэт
Lisboa Possível
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5 min readJun 11, 2022
Fonte: https://www.facebook.com/watch/?v=706912780442970

Para contextualizarmos o nosso raciocínio, em Portugal o peão não tem prioridade. Nenhuma cidade é para todos: o carro ocupa o topo da hierarquia dos valores. Provas? Se a rua é estreita, o carro passa sempre e castra-se o passeio, nunca o trânsito.

Centro de Lisboa

Os partidos majoritários do centro — PS e PSD — não tem na sua política nacional uma posição firme e inequívoca sobre como lidar com o excesso de carros, e nunca expressaram interesse em colocar o peão no topo da hierarquia. Preferem adaptar a postura ao contexto eleitoral local para ganhar votos.

Nos tempos de Costa-Medina

Fonte: as internets

Em Lisboa na época de Costa-Medina juntou-se a fome com a vontade de comer. Mais e mais lisboetas começaram a cobiçar o espaço da cidade para caminhar e pedalar, já que aqueles que estudaram e trabalharam fora, ganharam o gosto pelo urbanismo humano e verde. O Medina, inspirado nas capitais europeias progressistas, ousou introduzir elementos de urbanismo evoluído. No entanto, não tendo a certeza sobre a reação popular às suas medidas, fê-lo em formato “monarca iluminado”, sem consultas e sem tentar envolver a sociedade civil. Para dar um exemplo, um bilhete para a Velo City 2021 — uma conferencia promovida pelo antigo presidente — custava 750 euros, um preço exorbitante, explicado por um dos speakers “porque é só para os experts” (nem a versão digital é gratuita, continua em oferta por 120 euros).

O apogeu deste absolutismo iluminado, quando a maioria do PS parecia indestrutível, aconteceu em 2018–2020, com a explosão de ciclovias e das bicicletas partilhadas. De facto, a elite política agiu com mais coragem e visão do que a sociedade civil, que em boa verdade pouco se envolveu, e também pouco foi envolvida neste projeto urbanístico.

O destrono

O Carlos Moedas dificilmente tinha hipótese de ganhar após uma década do superpoder socialista. Quem teria apostado o próprio dinheiro na candidatura da oposição? No entanto, o PSD em Lisboa fazia o que a oposição tinha de fazer: agarrava cada oportunidade para destronar o Medina.

Convidavam os Vizinhos de Arroios para os vídeos promocionais, de modo a ganhar campanhas locais. Puxaram a primeira brasa para o Russiagate, usufruindo da onda de indignação nacional que seguiu para ver o eleitorado socialista ficar em casa ou votar noutros partidos.

Mudar a burocracia da CML, com os seus quase 12.000 funcionários, para evitar mais um Russiagate é uma tarefa dura e com poucos ganhos mediáticos. Agora, tirar uma ciclovia para agradar os vizinhos, parecia uma vitória fácil e de grande visibilidade.

Resposta da cidade

A 19 de outubro de 2021 aconteceu algo único: a missanga de várias associações de mobilidade, grupos estudantis, lojas de bicicletas e cidadãos soltos juntaram-se para se manifestarem em defesa da ciclovia.

Hoje, depois de oito meses de ativismo, sabemos muito mais sobre a tela associativa de Lisboa. Hoje é claro que naquele dia os grupos rivais suprimiram os ódios mútuos de longa data, aceitaram a participação de novas vozes e vontades, e apresentaram-se lado a lado na praça do município.

Depois, no esforço comum foram recolhidas quase 3000 assinaturas. O discurso da Lisboa Possível na sessão aberta da CML culminou com o Ângelo Pereira a afirmar que não iam acabar com a ciclovia.

Apresentada a petição na AML, fomos às reuniões mal comunicadas no Mercado das Culturas em Arroios para defender a ciclovia. Em março a equipa dos assessores do Carlos Moedas apresentou o plano da terceira pop-up que, com todos os defeitos, gritava uma coisa: a ciclovia ficava, não era para acabar.

No final de maio a CML começou com a obra, retirando uns metros de pavimento ciclável e provocando um bonito picnic que bloqueou a avenida. Os partidos minoritários — Livre e BE — pediram para a Câmara parar a empreitada. O PS mostrou o seu protesto recusando-se a participar na votação e assim deixando o Carlos Moedas sozinho para lidar com as consequências da decisão dele.

Os bombeiros contribuíram: para eles a solução atual da ciclovia, que na altura até foi desenhada com os conselhos dos enfermeiros e condutores dos veículos de emergência, era melhor — ganhavam dois minutos em chegar aos doentes, uma diferença entre a vida e a morte.

Ainda por cima o gabinete do Moedas deve ter feito as contas e olhado para o abismo orçamental na forma das obras de drenagem que vão custar 133 milhões de euros. Gastar mais 400 mil euros na terceira — e só provisória! — pop-up deve ter parecido um desastre.

A ciclovia ficou, e ficou onde já ficava

Carlos Moedas recuou. Agora alguns dirão que ele é cobarde, outros — que é corajoso. Não tendo cor política, parece-nos que ele agisse racionalmente, respondendo a toda a pressão social, institucional e política.

Então não acham que isto quer dizer que obter o que queremos é, sim senhora, possível?

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