As inomináveis mulheres que encontramos em A filha primitiva

Ana Licia Morais
literato
Published in
3 min readSep 2, 2021

Qual a primeira coisa que você pensa quando digo a palavra maternidade? Eu penso na minha mãe e nas minhas avós que me criaram; penso em amor, família e laços. Entretanto, acima de tudo, penso também em desamparo, desespero e dor. Em A filha primitiva encontramos tudo isso e mais.

Nesse livro a autora Vanessa Passos nos apresenta uma trama familiar envolvendo uma vó, mãe e filha, três mulheres inominadas de diferentes gerações. A vó guarda segredos sobre a ancestralidade da filha, que não compreende sobre a maternidade, mas que engravida e se vê perdida em relação ao que dar a nova criança. Acompanhamos a saga familiar rodeada de confidências e muito sofrimento acerca do passado e suas raízes.

“Como dar amor e sentimento de pertença a um filho quando uma mãe não se sente pertencendo a lugar nenhum?”.

Retirei o trecho acima do prefácio escrito pela Giovana Madalosso, e essa frase resume de forma impecável o que será encontrado ao longo da história. Dor, de uma forma bem crua. É nítido o quanto a mãe sofre em relação ao sentimento de pertencimento, e torna-se impossível não compreender as suas angústias.

Ademais, autora aborda sobre outros assuntos ainda pertinentes na sociedade atual, como o machismo, a romantização da maternidade, violência contra a mulher, abuso sexual, uma fé que pode cegar, racismo e, não menos importante, sobre a ancestralidade. Além disso, há muita dualidade envolvendo esse livro: amor e ódio, cautela e imprudência, presença e ausência.

A filha primitiva e a maternidade

Maternidade é um assunto que me intriga. Coincidentemente, li esse livro em conjunto a um artigo que precisei analisar para a faculdade, ambos falavam sobre essa abordagem.

A gravidez é um período de mudanças complexas, tanto no quesito de transição biológica quanto em função de alterações sociais. É um momento em que há um estado temporário de equilíbrio instável e há uma necessidade de adaptações e reajustamentos. É de suma importância, portanto, o acompanhamento psicológico e preparação física da gestante.

“Pouca coisa sobra da gente depois da maternidade”.

Ao fazer um paralelo com A filha primitiva, notei que a protagonista não teve esse amparo. Foi difícil a mãe compreender o seu papel e se afeiçoar pela filha. Acompanhamos os pensamentos da personagem, desde seu sentimento quanto a criança até seus comportamentos sobre como agir com a sua filha. Foi difícil demais assimilar tudo o que acontecia, mas o mais complicado foi não julgá-la.

Há uma recusa por parte da mãe para com a sua filha. A negligência é visível e as agressões são sutis, mas existem e causam danos na criança. A protagonista possui essa consciência, e, em suas palavras, “…melhor morrer do que viver nesse mundo”. Isso obviamente não a ausenta da culpa de suas ações, mas acho que também é importante compreendermos o nível social da questão.

A maternidade é algo em que as mulheres sofrem uma cobrança social, tanto as que almejam ter filhos quanto as que optam por não ter. Por muito tempo o amor de mãe foi compreendido como algo inato, ou seja, que nasce já com a mulher. Entretanto, conforme estudos e pesquisas foram sendo realizadas, notou-se o quanto isso é uma construção sócio-histórica e cultural. Essa pressão imposta pela sociedade pode trazer prejuízos sérios a gestante e a criança.

Esse é o típico livro que traz uma reflexão muito vasta, principalmente em relação ao papel de mãe no âmbito social. Procuro ler cada vez mais sobre esse assunto, e esse livro veio em cheio para me agregar mais. A protagonista desse livro me mostrou como as consequências podem se desenvolver e, sobretudo, que precisamos dar atenção e discutir sobre essa temática que ainda é muito presente.

A filha primitiva tem 87 páginas, pode parecer curto, mas a autora abordou sobre os assuntos de forma ímpar. É uma escrita crua, rápida e necessária.

Aqui as mulheres não possuem nomes, elas podem ser qualquer uma de nós.

Aviso: esse livro contém gatilhos de violência física e sexual, racismo e maus-tratos infantis.

--

--

Ana Licia Morais
literato

22 anos, estudante de psicologia e escritora nas horas vagas. Ama criar heterônimos e viajar em suas criações. Encontrou na poesia uma forma de desaguar seu eu.