O fincar na terra é um meio de fuga para “a vegetariana”

ana guelere
literato
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4 min readSep 30, 2021

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“A Vegetariana’, de Han Kang. Editora Todavia.

“A Vegetariana”, obra de Han Kang, foi publicada no Brasil pela editora independente “todavia” em 2018. Sendo um romance curto dividido em apenas 3 capítulos, há um detalhe que intriga qualquer um prestes a começar sua leitura: a história é contada pelo ponto de vista de pessoas diferentes, mas nenhuma delas é a protagonista. Na verdade, encontram-se algumas poucas passagens sobre suas sensações — contudo, diz respeito à Yeonghye a partir principalmente de perspectivas alheias.

A autora nascida na Coréia do Sul usa seu próprio país como ambiente para a trama. De acordo com a entrevista concedida à VEJA, Yeonghye e Han Kang são mulheres que possuem a determinação como característica em comum — além de questionarem os lados sombrios e dignos da humanidade. Na narrativa, podemos encontrar uma jovem que, com uma única decisão, desencadeia traumas e causa discórdia no ambiente familiar: após acordar de inúmeros pesadelos violentos, Yeonghye opta por parar de comer carne. Mais tarde, com o propósito de deixar de causar e sentir dor para sempre, Yeonghye chega à conclusão de que deve virar uma árvore e passa a consumir apenas água. Pelos olhos e julgamentos de seu marido, seu cunhado e sua irmã, é possível enxergar o abuso que a cerca desde a infância.

“Só confio nos meus peitos. Gosto dos meus peitos, porque com eles não posso matar nada nem ninguém. Afinal, mãos, pés, dentes e língua, qualquer coisa com apenas três centímetros, tudo pode servir de arma, é capaz de matar e machucar. Até mesmo o olhar. Os peitos, não. Enquanto eu tiver esses seios redondos, estarei bem. Ainda estou bem. Mas por que será que meus peitos estão diminuindo? Já nem são mais arredondados. Por quê? Por que estou emagrecendo? Estou ficando tão afiada; será para cortar o quê?”

Para o marido, Yeonghye nunca foi sequer atraente. A descrição que ele faz da esposa logo no início do livro demonstra o quanto a despreza — “Acabei me casando porque ela não tinha nenhum charme especial, e também por não ter notado defeitos gritantes. Uma personalidade dessas, sem frescor, brilhantismo ou refinamento, me deixava confortável”, basicamente porque, dessa maneira, ele não se sentia inferior à parceira e tampouco a necessidade de ser bom. Quando Yeonghye se tornou vegetariana, seus novos hábitos e ações fizeram com que o homem a visse como uma “maluca”, resultando até mesmo no ódio crescente seguido de divórcio.

O cunhado, entretanto, guarda um segredo desde que a conheceu. Com muitos projetos escritos e desenhos engavetados, havia um trabalho em especial em seu caderno de rascunhos — algo que o produtor de vídeos artísticos deveria manter distante de quaisquer bisbilhoteiros: os rabiscos de um homem e uma mulher nus, cobertos por flores. O corpo feminino, mesmo que sem rosto, representava alguém: Yeonghye. E Yeonghye era um fetiche sexual.

No período mais dramático da vida da protagonista, é a irmã mais velha que a visita no hospital psiquiátrico. Nessa terceira parte do romance, existe um momento onde alcançamos descobertas mais pessoais sobre seu passado, principalmente pelo relacionamento com o pai. Ainda menina, Yeonghye foi quem mais sofreu em suas mãos, violência essa que causou fortes danos e a impregnou até a fase adulta. No primeiro almoço em que descobrem que Yeonghye passou a evitar carne, ele a bate.

“Yeonghye, de personalidade pouco condescendente, não sabia acompanhar os humores paternos. E sem conseguir oferecer resistência, os maus-tratos devem ter lhe atingido até os ossos”.

Han Kang diz que a obsessão que a personagem possui em se transformar em uma planta seria a forma que encontrou de se salvar. Apática, sem ingerir nada que não fosse água e com a crença de que seu corpo pode fincar a terra, ela não é a dona de um conto feliz. A obra é composta por uma escrita delicada, ainda que forte. A sensibilidade é notória em Yeonghye apesar das poucas palavras escritas conforme seus pensamentos. De qualquer modo, há necessidade de pausar a leitura vez ou outra para respirar fundo e absorver o que nos foi entregue. Não seria ilusório afirmar, aliás, que o trabalho de Kang futuramente seja visto como um clássico da literatura sul coreana. Mesmo que atinja os mais sensíveis, lembramos que a violência é predominante e, infelizmente, cotidiana. E mesmo com a estranheza aos comportamentos de Yeonghye, não é difícil entender o desejo exposto em tornar-se “imune” à barbárie humana.

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ana guelere
literato

crio e reviso. convivo com a poesia desde dois mil e alguma coisa. @casmurromorreu.