VISTA DE OPERÁRIO
Os pombos sobrevoavam a cidade poluída em mais um dia, assim como deveria ser.
Aquele estava entre os trezentos e sessenta e cinco. Há o sol escaldante e barulho de tráfego vindo das avenidas. As buzinas ecoavam pelas vidas que atravessavam a faixa de pedestres e os sinais abriam e fechavam perto de um edifício em construção. No alto, um homem apreciava a vista mais uma vez — igual a todas as outras. Com as mesmas pausas, mesmas piadas e mesmos colegas esperando anoitecer.
Sentou-se e observou tudo como se fosse um mero peão num jogo de tabuleiro, esperando que alguém lançasse os dados e decidisse o próximo ato. A marmita deixada de lado denunciava sua falta de fome. Três cigarros seriam suficientes como almoço — além disso, caso o relógio corresse como sempre fazia, logo estaria no bar onde mataria sua verdadeira vontade.
Passou a mão na testa suada. Curioso, arriscou fitar o sol, mas isso só o fez voltar o olhar rapidamente ao chão xingando a si mesmo pela ideia idiota. Afastando as mãos das pálpebras, finalmente percebeu uma movimentação incomum abaixo do andaime onde estava.
Eram pessoas, definitivamente no plural. Como formigas em um bolo, elas se amontoavam e mexiam de lá para cá, confusas. As observava de longe. Tinham ganhado sua atenção e de repente a vista já não era a coisa mais interessante naquele dia. Apesar da altura, o operário conseguia reparar nos rostos da pequena multidão; olhos arregalados, feições horrorizadas, tudo parecia um filme passando em câmera lenta cujo ele tinha uma perspectiva privilegiada.
Logo viu uma mulher no telefone, a moça tremendo tentando ligar para alguém. Em poucos minutos foi possível descobrir de quem se tratava. As luzes e sirenes inundaram a rua em pouco tempo, bombeiros e policiais lutavam por espaço em meio ao pequeno caos na calçada. Algo definitivamente aconteceu.
A pausa do serviço já durava muito mais do que o devido. Fazendo esforço, o homem se esquivava tentando ver a razão do burburinho. Com tanta gente por ali, sua visão acabou sendo bloqueada. Por um breve momento conseguiu perceber algo. Alguém desmaiado, caído no chão.
A visão foi ficando mais clara e um calafrio o percorreu quando reparou nas vestes da vítima. Parecia ser o mesmo macacão de sua equipe, aquele azul com listras laranjas. Mas não poderia? O medo da possibilidade era como uma voz cada vez mais alta na mente do operário.
Os segundos passaram como se fossem horas, os minutos voaram como se tivessem asas e os pombos apareciam um por um ao seu lado. O relógio marcou o horário como todas as vezes e o operário, impaciente e cheio de perguntas, obteve respostas.
O que restava do cigarro caiu de suas mãos lentamente. As cinzas voaram em direção a bagunça e uma gota de suor gelada percorreu a testa. Estranhamente, o clima já não o incomodava. Nem os pombos, nem as piadas e nem os seus colegas. Sua cabeça mentia. Não poderia ser, sequer fazia sentido.
Agora não havia desculpa ou lente mais clara que sua visão. Seria ele deitado na calçada. Morto, caído aos pés do andaime, com o rosto voltado ao mesmo céu de todos os dias. Como? Sua vida sempre esteve nos trilhos, mesmo quando tortos. As semanas seguiam cheias de pressa, bebidas, marmitas e piadas. Cotidianamente era recebido pela bela vista, mas nunca imaginou que morreria dessa forma, diante ao paraíso — aquele não vivido, apenas sonhado num trágico e mal contado fim.