A filha perdida | de Elena Ferrante

Victor Hugo (vitorinu)
o vitorinu

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‘Eu sou uma mãe desnaturada’

É assim que Leda, protagonista de ‘A filha perdida’, de Elena Ferrante, se enxerga perto do seu desfecho enigmático. Essa também é a tônica do livro: o tortuoso caminho de uma mulher que se vê silenciada ao se tornar mãe. A palavra ‘maternidade’ tem uma profundidade que engole quem passeia por ela. Quer dizer. Se joga nela porque nada que envolve filhos é à passeio. É para vida toda. Qual o efeito da cobrança do amor incondicional na vida das mulheres? Da sua saúde à vida profissional?

Não é a primeira vez que li um livro de Elena Ferrante. Fui iniciado pela ‘A vida mentirosa dos adultos’, outro drama italiano que desperta sentimentos difícil de explicar. Essa sensação ‘ferrantiana’ de que algo vai acontecer nas esquinas dos parágrafos do livro. Quando finalmente viramos, e o que parecia derradeiro finalmente acontece, não entendemos de cara. Um movimento natural dos humanos: se jogar em caminhos inexplicáveis em busca de saciar desejos profundos.

“As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender.”

O ponto de partida do livro é a viagem de Leda, uma professora universitária, a uma cidade praiana depois que suas filhas se mudam para a casa do pai, no Canadá. De início ela assume um tom conhecido pelos filhos que já se veem longe de casa: ‘elas só me ligam quando querem uma coisa’ ou ‘mal se interessam pelo que acontece comigo’. A melancolia de Leda parece vir dessa espécie de ressentimento materno que nasce quando suas crias correm do seu ninho. Mas o buraco é mais embaixo.

O que era uma viagem para estudar, pegar um sol e desfrutar da própria companhia, se torna uma tortura para Leda que fica obcecada pela figura de uma banhista chamada Nina e sua filha. A mulher chama atenção de Leda pela sua beleza, pelo aparente companheirismo com a criança e por se destacar no meio da família grosseira do esposo da desconhecida. Essa última relembra sua infância conflituosa em Nápoles(cidade que é uma das obsessões da autora).

Leda salta de uma mãe se refazendo com a partida das filhas para uma mulher atormentada por esse lugar. Da praia barulhenta ao de ser… A MÃE. Com todas as letras em maiúsculo. Ela não se considera boa nesse papel. Existe um movimento feminino que há um bom tempo diz: ‘amo meu filho, mas não amo ser mãe’. Na equação da maternidade, o resultado é o mesmo. Fora do mercado de trabalho, em casa cuidando dos filhos. As alterações no corpo, as dores do pós-parto ou o desenvolvimento de uma possível depressão. Tudo isso ao mesmo tempo.

Esse fardo é constantemente ignorado por todos. O instinto materno cuida de tudo. Mas nem sempre é assim. Nenhuma mulher é preparada de verdade para essa função apesar da sociedade desejar que todas assumam esse papel. Todas as lembranças de Leda encostam no presente. Ela deseja se aproximar daquela mulher que parece tão perdida nesse mesmo lugar de mãe. Aos poucos elas duas se conectam por esse fio invisível cheio de segredos.

A relação de Leda e Nina se estreita a partir de símbolos explorados de forma sutil: uma boneca furtada por Leda, o chapéu que sempre voa da cabeça de Nina, como se a deixasse desprotegida o tempo todo, a barriga pontuda da cunhada de Nina como uma ostentação da gravidez e maternidade plena. Coisa que nenhuma das duas experimentou e nessas circunstâncias se impõe igual a um tabefe.

Perto do seu fim, Leda se torna ainda mais efusiva e desperta muitos sentimentos: raiva, tristeza, medo, piedade, confusão e por fim, empatia. O movimento natural de Leda, tão cheio de defeitos como qualquer ser humano, foi expor por completo sua imperfeição. Infelizmente, nesse mundo mães imperfeitas não são bem vistas. Entre ser desnaturada e viva, Leda escolheu a segunda opção. Seu final me fez questionar: será que no futuro as mulheres conseguirão fazer a mesma opção que ela sem sentir tanta dor e culpa?

‘A filha perdida’ foi escrito pela italiana Elena Ferrante que é dona de grandes sucessos editoriais sem nunca ter mostrado o seu rosto. A história de Leda também pode ser vista na adaptação para o cinema que estreou na Netflix no início de 2022. A personagem é interpretada pela atriz Olivia Colman.

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Victor Hugo (vitorinu)
o vitorinu

Jornalista, apaixonado por livros e desbravador de sebos do Rio de Janeiro.