Anne Frank e o poder do seu diário

Anne encontrou refúgio nas palavras

Victor Hugo (vitorinu)
o vitorinu

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O nome do meu diário se chama ‘refúgio’. Foi o jeito que o meu ‘eu’ de 16 anos o batizou em um momento de adolescente em crise(ou aborrecente em crise, depende do seu nível de compaixão). Não penso mais nele como um lugar para despejar impressões, sentimentos e ansiedade diária. Ele se tornou uma espécie de estudo sobre mim, sobre como evoluí ou, infelizmente, como não saí do mesmo lugar.

Tive mais certeza disso durante a leitura de ‘O Diário de Anne Frank’. Não que eu queria me comparar a uma menina judia que tentava sobreviver em plena Segunda Guerra, mas como sou cheio de aspirações a ser jornalista e escritor como Anne é impossível não se familiarizar com o seu texto. Ele foi construído em uma crescente evolução até a última página que significou o fim da sua vida mesmo que só tenha falecido um ano depois do seu esconderijo ter sido descoberto por um oficial alemão. O destino foi um campo de concentração igual ao restante da sua família(pai, mãe e irmã). E um destino cruel para o seu primeiro amor, Peter van Daan, que foi forçado a participar da Marcha da Morte(Deslocamento a pé feito por judeus entre campos de concentração). O flagrante da sua clandestinidade e, consequentemente, a perda do direito da escrita causaram uma morte em vida. A pior de todas.

Isso aconteceu porque as suas palavras constituíam materialidade, lugar e poder. Além da superação da marginalidade em que os judeus eram lançados naquela época. Evidentemente, não proporcionavam pouca coisa para Anne Frank. A construção da sua memória, mesmo com alguns escritos depressivos, reforçava a ideia de que um dia tudo iria melhorar, mas a sua história terminou triste, ultrapassou as barreiras do anonimato e temperou certas passagens com uma ironia involuntária.

Tenho uma sensação especial ao escrever o meu diário. Acho que, mais tarde, nem eu nem ninguém achará interessante os desabafos de uma garota de treze anos.

20 de junho de 1940

Eu tive a mesma reflexão quando comecei a alimentar um diário em 2014. Na maioria das vezes, eu pensava: ‘Por que estou fazendo isso?’. Lembro que demorei um pouco para escrever sem o meu rosto ficar quente e vermelho. Foi mais fácil levar isso adiante, sem embaraços, quando pensava no futuro. Várias vezes direcionei as minhas palavras ao Victor de 20, 22 e 26 anos. Ler a pequena Anne Frank me fez ficar saudoso porque lembrei do tempo que era permitido ser mais ingênuo. Fiquei triste porque ela não teve o mesmo privilégio. Uma guerra paralisante usurpou as suas expectativas de vida, mas não por completo. Ainda existia o seu diário.

Não sei qual á a finalidade disso tudo, mas sei lá… quero me adaptar com a minha vidinha sendo guardada para os próximos anos. Meus anseios, minhas dúvidas, com tudo que está no meu futuro.

Será que daqui a dez anos tudo estará diferente?

08 de julho de 2014

Este trecho foi tirado da primeira página do meu diário. Ao reler esse pedaço de mim e dar uma chance ao de Anne, percebi algumas coisas: O maravilhoso poder do registro da memória, tanto para a preservação da saúde mental quanto para marcar fatos históricos, e como o ser humano é adolescente em qualquer lugar. Seja no Brasil do século XXI ou na Holanda do século XX. Escrevi o meu diário deitado na minha cama, depois de algum desentendimento familiar ou após um dia estranho na escola. Anne o escreveu depois de uma discussão com a mãe ou o pai, mas também quando terminou de escutar notícias na rádio e ver o fim da guerra a cada dia mais distante.

Todos temos tragédias, banais ou asfixiantes, para lidar. Como disse no início do texto, não cabe comparações com Anne, porque cada pessoa é única, mas tive mais certeza que alimentar um diário consiste justamente no poder de mergulhar em si mesmo. Registrar com lembranças e emoções uma parte de si. Eu e Anne temos isso em comum.

Fugindo um pouco da realidade, isso também é defendido na literatura fantástica. Na saga Harry Potter, existe a possibilidade guardar parte da alma de um bruxo em objetos pessoais. Eles são chamados de ‘horcrux’ e foram usadas por Lorde Voldemort para se manter vivo após a sua morte. Uma delas é o seu diário escrito na época em que assinava o seu nome como Tom Riddle e era um estudante promissor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Não creio que J. K. Rowling, autora da saga Harry Potter, escolheu esse objeto de forma aleatória. A ideia desse tipo de registro ser considerado um objeto importante nesse universo mágico me faz pensar em como ele pode ser enxergado no mundo real. Uma parte da alma.

Lá guardamos uma série de impressões. Das mais equivocadas às sensatas, fica claro que recebemos muitas informações e energias a todo momento. Os anos passam e o que poderia ser uma catástrofe aos 16 anos tem o peso de uma pena aos 20. O tempo fica mais visível e difícil de ignorar. Ele começa a desfilar diante dos seus olhos, acenando, um pouco cínico, mas sábio. Ele diz: 'Alguma hora você vai aprender. Não tem como fugir.' Foi por isso que a depressão de Anne aumentou conforme o tempo passava. A juventude se esgotava a cada dia que passava naquele esconderijo, privada de estudo e distração. De qualquer forma, Anne viveu a insegurança do primeiro amor, os conflitos familiares hiper aumentados pela lupa da imaturidade e uma juventude baseada no desejo de se tornar uma pessoa melhor. Como eu também vivi. Um adolescente não vai conseguir fugir dessa narrativa. Infelizmente, o tempo se distanciou de Anne até não conseguir ser mais visto por seus olhos.

Seria mais apropriado terminar com uma parte do diário dela. Deixar quem chegou até aqui mastigar as suas palavras doces sobre a vida dura que levava. Poderia até pensar: 'Gostaria de andar com essa garota na hora do recreio', mas depois que terminei de ler 'O Diário de Anne Frank' só consegui pensar em uma passagem de um dos meus livros favoritos chamado 'A louca da casa' da escritora espanhola Rosa Montero:

Continuo a pensar que escrever nos salva a vida. Quando tudo o resto falha, quando a realidade apodrece, quando a nossa existência naufraga, podemos sempre recorrer ao narrativo.

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Victor Hugo (vitorinu)
o vitorinu

Jornalista, apaixonado por livros e desbravador de sebos do Rio de Janeiro.