Antoine de Saint-Exupéry não viu o Pequeno Príncipe virar uma estrela

Aviador encontrou inspiração na sua coragem e rebeldia

Victor Hugo (vitorinu)
o vitorinu

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Um homem e um menino encontram-se no deserto. O que pode nascer deste encontro?

Parece um exercício proposto em oficinas de escrita criativa, mas é o início de um dos maiores clássicos da literatura. 'O Pequeno Príncipe' foi lançado em 1943 e até hoje é muito lembrado por sua história cativante, e um tanto filosófica. Eu demorei para dar uma chance ao 'Le Petit Prince’, nome original da obra escrita e ilustrada pelo francês Antoine de Saint-Exupéry que morreu antes de vê-lo publicado e prestigiado pela crítica e pelo público.

Eu tenho dificuldade em ler obras que são muito aclamadas. Não porque prefiro ler escritores ‘diferentões’. Sempre tenho medo de ler uma história superestimada, então deixei o Pequeno Príncipe intocado em seu asteróide igual a rosa que ele cuidava, com esmero, antes de chegar à Terra.

Em 2019, além de tomar coragem para criar esse espaço, também decidi abandonar velhos hábitos literários. Por ter 136 páginas, li 'O Pequeno Príncipe' em apenas uma tarde. Consegui explorar alguns cantinhos do espaço sideral com o menino 'alien’ e acessar lugares emocionais de quem já se acostumou com a vida adulta. É decepcionante perceber que penso em números o tempo todo. Quanto ganhei, quanto gastei, quanto custa.

Se você diz às pessoas grandes: “Eu vi uma bela casa de tijolos cor de rosa, com gerânios nas janelas e pombas no telhado…”, elas não conseguem imaginar esta casa. É preciso lhes dizer: “Vi uma casa de cem mil francos”. Então, elas exclamam: “Como ela é linda!”. O Pequeno Príncipe, Pg. 25

'O Pequeno Príncipe' pode ser considerado uma cartilha para quem ainda quer preservar uma mente inventiva. E para aqueles que precisam se reconciliar com a infância. Antes do encontro com o menino no deserto, o narrador diz que desenhava uma jiboia digerindo um elefante, mas os adultos só conseguiam enxergar um chapéu.

Mesmo depois de explicar que não era o que parecia, as pessoas o aconselharam a deixar de lado essas criações incompreensíveis e se dedicar a geografia, história, cálculo e gramática. Depois de desistir de ser entendido pelos adultos, o narrador escolhe outra profissão: pilotar aviões. Aparentemente, não ficou infeliz, mas ainda se sentia incompreendido. Guardou o desenho da digestão da jiboia e mostrava para algumas pessoas, mas elas sempre respondiam que era um chapéu. Então, ele se recolhia e conversava sobre assuntos que os adultos entendiam.

A introdução do narrador, antes do encontro com o Pequeno Príncipe no deserto, já descreve boa parte da vida de Antoine Saint-Exupéry e, principalmente, os seus últimos anos de vida.

Antoine nasceu em 1900 e perde o seu pai aos quatro anos de idade. A família passa por dificuldades financeiras depois disso e se mudam para casa de parentes em diferentes momentos. A vida nômade não tirou a tranquilidade da sua infância. Desde cedo, Antoine inventava projetos que envolviam mecânica e a sua imaginação fértil. Chegou a construir uma espécie de bicicleta voadora e, obviamente, não foi uma invenção bem sucedida porque seria famoso por esse feito, não por ser uma lenda da aviação e autor de várias obras de sucesso.

Aos 17 anos, tentou entrar duas vezes na escola naval de Paris. Fracassou. Iniciou o serviço militar no 2º Regimento de Aviação de Estrasburgo aos 21 anos. A sua vida ficou mais completa quando conheceu o mundo no céu e escrevia longas cartas para a família e amigos sobre as viagens. Era o encontro do Antoine aviador com o Antoine escritor. Viveu um ano e meio em Cabo Juby, uma colônia espanhola, no sul de Marrocos, negociando com tribos locais que lutavam pelo fim do domínio espanhol. Antoine tinha um papel diplomático nas conversas sobre a libertação dos pilotos que foram presos após sofrerem acidentes enquanto sobrevoavam a área. Graças a essa experiência, publicou a sua segunda obra "Correio do Sul", que teve boa recepção da crítica e chegou a ser adaptada ao cinema.

Publicou outras obras inspiradas pela aviação e foi criticado por pilotos que o acusaram de revelar segredos do ramo em seus romances. Mesmo incompreendido por seus colegas de profissão, Antoine viveu histórias que o transformaram em uma lenda entre eles. Ajudou no resgate de um dos seus melhores amigos, Henri Guillaumet, que sofreu um acidente na Cordilheira dos Andes, e em 1935, o seu avião caiu no deserto do Saara. Acompanhado do seu mecânico, ficaram quatro dias sem recursos e comunicação até serem resgatados. Antoine contou essa história no livro “Terra dos Homens”.

Na Segunda Guerra Mundial, tornou-se piloto militar e desembarcou nos EUA como um refugiado após a invasão alemã na França. Esperou convencer o governo norte-americano a entrar na luta contra o exército de Adolf Hitler. Lá escreveu o seu penúltimo livro em vida, “Piloto de Guerra”, que narrara suas experiências no conflito. O texto fortaleceu a campanha pelos EUA ficarem ao lado da Franca na Segunda Guerra. No mesmo ano, a obra foi publicada em seus país natal, mas ainda sob ocupação alemã. Foi banido e criticado pelo exército francês.

Foi nesse cenário triste que Antoine Saint-Exupéry, se sentindo incompreendido, escreveu "O Pequeno Príncipe". Depois de completar dois anos de refúgio nos EUA, entregou o seu manuscrito a uma amiga de confiança e retornou a França para retornar a Segunda Guerra. Mesmo com idade avançada, ele tinha 43 anos na época e limitações físicas, foi convocado a uma missão secreta com o objetivo de identificar um local seguro para o desembarque americano na costa do Mediterrâneo. Ele desaparece, o seu corpo nunca foi encontrado e assim não vê a sua última obra se tornar um sucesso estrondoso.

A história entre o aviador perdido no deserto do Saara e o menino do asteroide B-612 alcançou tantas pessoas porque era o espelho do que existiu dentro de Antoine. Suas ações foram dotadas de idealismo e paixão. A sua coragem em explorar outros países e sair da sua zona de conforto era equivalente ao do próprio Pequeno Príncipe. A lealdade de Antoine com seus amigos aviadores está refletida na relação entre o menino ‘alien’ e a rosa que ele cuidava com carinho, até quando era vaidosa e melindrosa. Os editores responsáveis pela publicação de ‘O Pequeno Príncipe’ não concordavam com o desfecho da história, mas Antoine bateu o pé. O menino deveria ‘morrer’ e se tornar uma estrelinha no céu.

O final dramático também conversa com o fim da inocência de Antoine. Com 17 anos, perdeu o seu irmão, François, de 15 anos, depois de o mais novo pegar uma forte friagem e ficar doente. O último encontro entre os dois no hospital surpreendeu Antoine porque esperava que uma criança rejeitasse com força a ideia da morte, mas isso não aconteceu. O mais irmão novo tranquilizou o irmão mais velho.

Vai ser bom, sabe. Eu também vou observar as estrelas. Todas as estrelas são poços com uma roldana enferrujada. Todas as estrelas me darão de beber………O Pequeno Príncipe, Pg. 129

As últimas páginas de "O Pequeno Príncipe" podem ter sido inspiradas em um evento que dividiu a vida de Antoine Saint-Exupéry entre a infância e a brutalidade da vida adulta, mas a obra manteve viva a chama da ingenuidade, da simplicidade e da pura imaginação. Manteve o público infantil e adulto responsável por aquilo que cativas e floresceu a vontade de transcender o que nos é imposto. Graças a Antoine conseguimos explorar outros horizontes através das aventuras que viveu no céu e no mundo da fantasia, mas o seu último livro em vida lembra que a principal viagem deve ser feita dentro de si. Não é a toa que o fim de O Pequeno Príncipe reserva um momento de reflexão do narrador que observa o céu e se pergunta: ‘O carneiro comeu ou não a flor?”.

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Tirei boa parte das informações deste documentário exibido pelo canal franco-alemão Arte chamado 'Antoine Saint-Exupéry, o último romântico' em 2017.

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Victor Hugo (vitorinu)
o vitorinu

Jornalista, apaixonado por livros e desbravador de sebos do Rio de Janeiro.