‘Califórnia’ é um retrato dos jovens ansiosos na década perdida

Victor Hugo (vitorinu)
o vitorinu
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4 min readNov 26, 2020

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‘Califórnia’ é um filme que relembra o avanço da democracia no Brasil, com as Diretas Já, e a sombra da epidemia da Aids. Esse clima de liberdade e conservadorismo sexual caminha com as revoluções particulares de uma jovem chamada Estela (Clara Gallo) que ganha de presente uma viagem à Califórnia, cidade onde seu tio Carlos (Caio Blat) mora. Porém, a terra prometida fica para trás quando ela precisa lidar com a chegada inesperada do tio ao Brasil e o adiamento da viagem.

Marina Person, atriz e ex-VJ da antiga MTV Brasil, estreia como diretora no longa e consegue apresentar com esmero elementos da época embalados em uma ótima trilha sonora. O plano sequência inicial, ao som de ‘Five Years’, de David Bowie, é um tour pelo quarto da protagonista que, exposto ao futuro, parece um museu dos anos 80. Pôster dos Beatles, discos de vinil, um boneco do E.T., o extraterrestre, uma pelúcia do Garfield e fitas k7. É o começo intimista da adolescência da personagem.

Estela grava um monólogo para o tio através de outro artefato da década de 80, um gravador de voz, e isso remete a uma época de sonhos juvenis contados aos sussurros em um canto do quarto. Bem diferente do fluxo de sonhos presente nas redes sociais. As festas ao som de Blitz e Kid Abelha não podiam estar de fora. Como também os ‘crushs’ da adolescência. A atenção da jovem caminha entre o menino considerado o mais bonito da escola (Giovanni Gallo) e o novato desajustado (Caio Horowicz), mas sensível e de bom gosto musical.

Esse universo tranquilo, comum a uma jovem de classe média alta, é transformado quando seu tio decide fazer o movimento contrário. Sair da Califórnia e voltar a São Paulo. Debilitado, mas com muitas histórias para contar, tio Carlos traz presentes e novidades. Só não divide com a sobrinha o resultado dos seus exames. A figura de Carlos é oposta ao pai conservador, Beto, interpretado por Paulo Miklos, ex-vocalista do Titãs.

É divertido assistir Paulo interpretar um sujeito que, com certeza, abominava o que os Titãs representaram para os jovens daquela geração. Da boca dele sai frases como: “chega uma hora que um homem cresce e precisa assumir responsabilidades”. Essa postura cresce à medida que a saúde do tio piora e a viagem à Califórnia se torna um sonho distante. O grande estigma ao redor de pessoas que receberam o diagnóstico do HIV na época é retratado com sensibilidade por Marina Person.

Esse tema é abordado em planos fechados. Desde um gesto carinhoso entre o tio e outro homem ao seu leito no hospital. Tudo isso é acompanhado pelos olhos curiosos de Estela que sente o gosto da maturidade longe das praias californianas. É num Brasil oitentista que ela tem contato com a sua primeira desilusão amorosa, o frescor de um novo amor e o impacto da doença e do luto. Estela precisa se encontrar em uma sociedade que parecia andar para frente, ao se despedir da Ditadura, mas que depois dá dois passos para trás graças à epidemia da Aids.

Outro mérito do filme é ter atuações contidas e muito naturais. Essa sensação se acentua pela escolha de planos fechados e longos planos sequências. As cenas de Estela e as duas amigas conversando sobre garotos, virgindade e absorventes são tão orgânicas que conseguem hipnotizar o espectador, e devem arrancar sorrisos nostálgicos do público feminino.

A fotografia dessaturada somada a trilha sonora cheia de bandas de rock brasileiras e new wave gringo contribui para criar a estética de filme vintage e desperta o sentimento nostálgico em todos os jovens ansiosos que viveram na década perdida, como é considerada os anos 80 hoje em dia por causa da crise econômica que atingiu o Brasil e outros países da América Latina.

Seu desfecho ao som de ‘The Caterpillar’, do The Cure, dá vontade de cantar a canção com toda força em um estádio lotado. A jornada de Estela a transforma e parece querer renegar o limbo entre o avanço e o retrocesso. Esse movimento é presente em jovens do tempo atual e das gerações passadas. É a vontade de crescer de forma consciente, alcançar terras distantes e usufruir de sentimentos intensos. Basta saber encontrar o caminho. Para Estela a maturidade era a Califórnia, mas nem sempre ela é conquistada em um guia de viagens.

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Victor Hugo (vitorinu)
o vitorinu

Jornalista, apaixonado por livros e desbravador de sebos do Rio de Janeiro.