Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos | de Ana Paula Maia

Com escrita violenta, autora reflete sobre grupos negligenciados

o vitorinu
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4 min readSep 8, 2020

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Tem gente que mergulha nos livros para fugir da realidade. Mas existe escritores que usam da ficção para nos fazer lidar com um realismo indigesto. O livro 'Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos' traz personagens acostumados com o submundo que a sociedade os relega.

São duas novelas. A primeira reserva as aventuras de uma dupla de homens que trabalham em um abatedouro ilegal de porcos. A segunda narra as reflexões de um coletor de lixo sobre a hipocrisia da sociedade. Todos se tornam invisíveis aos olhos dos outros no meio do sangue e da sujeira.

Ana Paula Maia, escritora e roteirista carioca, que nasceu em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, tem uma escrita violenta. É fácil se chocar com algumas passagens do seu livro. Tem de tudo: zoofilia, roubo de órgãos, pedofilia, homicídio. E não falo isso para te assustar ou para te afastar do trabalho de Ana Paula. É um incentivo torto. Porque todos esses temas são relacionados a personagens que não se importam mais com o lado feio da vida. Porque foram brutalizados por suas escolhas ou por simplesmente terem trabalhos que eu, você, nem ninguém quer ter.

É com essa premissa que as novelas tentam chamar nossa atenção. Como a sociedade deixa que parte dela se desumanize ao ponto de não ligar mais para as leis, julgamentos, o próprio corpo, a saúde. Na primeira novela, em seu primeiro capítulo, o personagem Edgar Wilson assassina uma pessoa, mói a sua carne e a vende como se fosse de porco. Ele faz isso tudo sem pestanejar, como se fosse um gesto natural. Como coçar os olhos, beber um copo d’água, respirar.

Seu companheiro, Gerson, não fica atrás. Ele, com um problema renal, decide pegar de volta o rim que doou à irmã. A “cirurgia”, com muitas aspas, no box do banheiro da azarada é realizada enquanto ele bate um papo com seu melhor amigo. Fala do filme do Chuck Norris e da ironia de tentar ser uma pessoa caridosa, mas seu corpo não reagiu à caridade. Eles dois vivem em um estado bestial.

Cão de rinha é um cão que não teve escolha. Ele aprendeu desde pequeno o que o seu dono ensinou. Podem ser reconhecidos pelas orelhas curtas ou amputadas e pelas cicatrizes, pontos e lacerações. Não tiveram escolhas. Exatamente como Edgar Wilson, que foi adestrado desde muito pequeno, matando coelhos e rãs. Capítulo 5

É comum no texto fazer relações com bichos. Seja com porcos irritantes ou cachorros que se matam em rinhas. Evento que os dois frequentam com fervor. Principalmente, Edgar Wilson. Esses dois exemplos que usei acima são alguns dos mais pesados. Porém, o que achei mais assustador foi perceber que a maioria dos crimes foram feitos em serviço. Isso quer dizer que não importa o que façam. Eles precisam cumprir metas. Fazer dinheiro circular. Para os patrões e seus próprios vícios.

A falta de leis e regras é presente em suas vidas. Até mesmo porque fazer um trabalho indigesto, que ninguém quer ter, talvez, signifique justamente isso: Se entregar a loucura. Sobreviver em um ambiente instável, sem policiamento e abandonado pelos gestores públicos.

A segunda novela, ‘O trabalho sujo dos outros’, nos leva a vida em cima do corrimão de um caminhão de lixo. Escorregadio, já causou muitos acidentes. Garis que caem e morrem, ou ficam inválidos, desempregados. Erasmo Wagner é um deles. Ele sobrevive refletindo sobre a decadência do seu serviço e de como ninguém se interessa com suas mazelas. As pessoas o evitam como se ele fosse o lixo que ele recolhe.

A precarização do trabalho também se vê na vida do irmão mais novo de Erasmo chamado Alandelon. Ele já está quase surdo por quebrar quilômetros de asfalto com sua britadeira. O incessante barulho, vital para a modernização dos espaços urbanos, onde gente transita o dia inteiro, é responsável pela adoecimento de uma pessoa que não é considerada de fato.

Erasmo Wagner remói em silêncio o quão importante é seu trabalho. Importante para manter a ordem, a segurança, a saúde. Importante para os ratos e urubus. Importante para quem o despreza por cheirar azedo. Capítulo 5

Os momentos finais do livro lançam uma crítica a uma sociedade consumista que descarta toneladas de lixo todos os dias. O conteúdo da lixeira diz muito sobre quem a pessoa é e de onde ela vem. Em um cenário apocalíptico, uma cidade engolida por ratos e sujeira é observada por Erasmo. Toda a barbaridade aconteceu porque pessoas como ele deixaram de trabalhar.

Quando eles voltarem a ativa, a barbaridade só vai acontecer com eles. E quem ignorar o ‘trabalho sujo’ que precisa ser feito por alguns continua a viver em completa cegueira. A pergunta que fica é a seguinte: Até onde a sua cegueira é conveniente?

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o vitorinu

Jornalista, apaixonado por livros e desbravador de sebos do Rio de Janeiro.