O apanhador no campo de centeio | J. D. Salinger

Holden Caulfield é um projeto de incel?

o vitorinu
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5 min readJul 17, 2020

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Protagonista de ‘O apanhador no campo de centeio’, Holden Caulfield não era um personagem muito comum na literatura americana, em 1951. Ele tinha 16 anos, era sarcástico e conseguia tecer comentários ácidos sobre a futilidade e hipocrisia das pessoas, mas só fazia isso dentro da própria cabeça. Não era perfeito. No duro.

Meio misantropo, muito pessimista e hiper depressivo, Holden foi abraçado pela sua geração e continua adotado como modelo por jovens descontentes ou por quem já superou a época ‘sad boy/girl’, mas que ainda sente, de vez em quando, aquela melancolia da adolescência sobre querer sempre mais. Sem saber mais o quê.

Atualmente, a figura de Holden pode ser revisitada de forma negativa. Durante a leitura achei seus pensamentos um tanto problemáticos. A introspecção, misoginia e um sentimento de raiva pela sociedade tem um cheiro de incel, termo extraído do submundo da internet, mas que aparentemente já dava as caras em uma Nova York dos anos 40.

Como esse Holden pode ser lido décadas depois da sua publicação? É justo a comparação com incels? E como sua figura conversa com a vida do seu autor, J. D. Salinger?

Depois que ‘O apanhador no campo de centeio’ foi publicado, Jerome David Salinger começou a se sentir pressionado pela fama. Ele era obcecado pela sua própria privacidade. A única entrevista que ele deu durante a promoção do livro foi para a uma estudante de Ensino Médio que escrevia para um jornal local. A conversa acabou na primeira página do jornal. Um destaque que ele não queria ter.

Essa introspecção era conhecida entre amigos e admiradores. Se ele tivesse uma versão brasileira, seria conhecido como Dalton Trevisan. Escritor curitibano que vive recluso e não conversa com a imprensa há décadas.

Agora, de volta a J. D. Salinger, tem quem o acuse de ser misantropo igual ao seu personagem mais famoso. Em uma entrevista esquecida, feita por uma estudante de jornalismo chamada Shirley Adman, em 1940, ele já demonstrava ser um reflexo de Holden.

“Fico muito melancólico e por dias — não posso tolerar nada — pessoas ou solidão. Quando eu era mais jovem, costumava me perguntar se era louco. Isso me preocupava muito”, disse Jerome. Na época, ele lançava o seu primeiro conto chamado ‘The Young Folks’. Esta entrevista pode ser lida na íntegra no site ‘The Drum’ aqui.

“Se o apanhador no campo de centeio fosse escrito hoje em dia, Holden Caulfield seria um incel?”, diz um dos tweets que relacionam Holden a esse movimento que é composto, basicamente, por homens brancos, heterossexuais e misóginos. Eles culpam mulheres por não terem uma vida sexual e amorosa ativa. O nome dessa ideologia é abreviação de ‘celibatário involuntário’.

Relacionar Holden com ‘incel’ é um debate comum no Twitter. Existe um consenso que ele é a figura original e primária dos ‘incels’. Eu até concordo com isso. Em várias passagens do livro, Holden se sente superior aos seus colegas de classe sexualmente ativos e descreve mulheres de forma porca, como ‘cara de vagabunda’ ou ‘cara de santinha’.

Há quem discorde dessa vibe incel. Em outros trechos, Holden até demonstra uma tal sensibilidade com as pessoas e consegue se incomodar com seus próprios privilégios de classe. Mas será que só isso basta? Não sei bem. Acredito que é isso que faz o personagem ser interessante. Mesmo com todas as suas problemáticas.

Se ele fosse só mais um exemplo de homem-menino imaturo e escroto, parecido com muitas personalidade escrotas no mundo atual, teria que concordar com o lado ‘incel’ da história, mas o personagem é beneficiado por um conflito comum à todos. Aquele sobre encontrar um lugar no mundo. Falo isso porque todo mundo já foi jovem algum dia e teve que lidar com as expectativas alheias.

O ponto de partida da história é a expulsão de Holden da escola Pencey para garotos. Em alguns dias, ele embarca em uma jornada pela madrugada de Nova York, com taxistas mal-humorados, rostos familiares, uma conversa séria com a sua irmã mais nova. Ele se joga para lá e para cá em busca de um sentimento de pertencimento. E não consegue.

Seus discursos anti-capitalistas, ora ácidos ao se deparar com a hipocrisia de uma conversa fiada e também um tanto misantropo conseguiram mascarar a sua misoginia e homofobia. Além de ser abraçado por uma geração insatisfeita com o padrão. Mais de 70 anos depois de sua publicação, Holden não é mais beneficiado por isso.

A geração ‘millennials’ é mais consciente sobre as narrativas que adota, quer dizer, acredito que seja assim. Por outro lado, também tento imaginar como Holden encararia o mundo atual. A superficialidade dos relacionamentos, o culto à própria imagem feita nas redes sociais, a cultura do cancelamento. Ele seria mais um militante do Twitter ou um rato de fóruns obscuros da internet?

Não existe uma reposta totalmente certa para Holden. Independente do lado em que ele se encontre, sua história ainda conversa com as incertezas da juventude. Fala sobre a busca por um lugar de compreensão íntima e que afaste a melancolia comum à jornada de se autoconhecer.

A última cena do livro, sem querer dar muito spoilers, traz um carrossel cheio de crianças inocentes montadas em cavalos imponentes e giratórios. Uma chuva torrencial cai e todos os adultos tentam se abrigar na estrutura do brinquedo. É a juventude que gira sem parar, no mesmo lugar, em uma jornada brilhante e melodiosa. Com a vida adulta à espera.

Holden fica na chuva por um tempo. Ele deixa se molhar.

O ‘literato’ é uma plataforma que busca relacionar temas atuais à literatura, apresentar dicas de escrita criativa e compartilhar minhas histórias. É o diário de bordo de um aspirante a literato nascido em 1997. Seja bem vindo!

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o vitorinu

Jornalista, apaixonado por livros e desbravador de sebos do Rio de Janeiro.