Vamos comprar um poeta | de Afonso Cruz

Artistas se tornam produtos em uma sociedade utilitarista

o vitorinu
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4 min readSep 14, 2020

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Admito que não li muitas poesias na minha vida, mas lembro de uma assim: 'A poesia não se entrega a quem a define.'

Essa é de Mario Quintana e cabe muito bem para descrever sua potência no livro ‘Vamos comprar um poeta’. Nele uma sociedade se movimenta pelo consumo e utilitarismo, definindo o que é importante ou não para o bem-estar e progresso da comunidade.

Uma família, representada de forma muito tradicional — um pai, uma mãe e um casal de filhos — tem a sua vida transformada quando a caçula da família, preocupada em medir tudo, desde os mililitros do choro a quantidade em gramas de comida no prato, decide ter um poeta. Nesse universo artistas são considerados inúteis e comparados a produtos(ou bichinhos de estimação, só depende do público).

Afonso Cruz, escritor, ilustrador e músico português, sabe envolver o leitor nessa história mirabolante e que diz muito sobre a atualidade. A arte no Brasil vive um momento de baixa. É criticada, rebaixada e sucateada. No debate sobre ‘o que é arte?’, seja em campos progressistas ou conservadores, principalmente no segundo grupo, sempre existe quem trate expressões artísticas como algo frívolo e menos importante do que outras pautas, como Economia e Segurança Pública.

A arte transforma espaços urbanos, a linguagem, o campo emocional das pessoas e como elas se enxergam na vida. Ela movimenta a economia também. Esse poder de transmutar a realidade é considerado algo ‘inutilista’ no livro de Afonso. Motivo para bullying, escárnio e até mesmo repreensão.

O pai apontou para o poeta que fungava e não tinha patrocínio nas roupas e
perguntou se aquele exemplar era subversivo, que é a característica mais
temida nos poetas, é o equivalente à agressividade dos cães.

O senhor da loja respondeu:
Está abaixo dos dois por cento. É sempre necessário serem um pouco
subversivos(…) Página 10

A leitura começa um pouco cansativa por causa da linguagem muito técnica usada pela menina. Ao desenvolver uma amizade com o poeta, sempre tão aéreo, com um caderninho na mão e sem roupas de marca, a garota começa a entender metáforas(na história, ela chama de ‘mentiras’). Começa a se expressar com figuras de linguagem que não dizem nada para as pessoas mais próximas. Tão preocupadas em movimentar a economia com compras e investimentos.

O poeta incomoda porque continua a enxergar a vida com outros olhos mesmo que problemas existam. Da mazela nasce um novo verso. Quando a vida financeira da família decai é o poeta que segura as pontas. É ele que transforma a vida de cada integrante daquela casa. Mesmo que seja constantemente maltratado pelo patriarca da família que é indócil e um tanto machista.

A menina técnica não para de pensar em metáfora o tempo todo e questionar a configuração da família: Por que o pai exige tanto da mãe? A matriarca também começa a rever as exigências do marido e seu lugar no mundo. O irmão palerma declama poesias para meninas na escola e adquire um charme, o tal do borogódó. Até o pai que é o mais intransigente começa a se render aos encantos da poesia.

Lembra do verso do Mario Quintana? Que citei lá em cima? Então, por mais que uma sociedade hipotética, relacionada a nossa realidade, tente definir a utilidade da arte, no caso, sua inutilidade, as expressões artísticas conseguem se sobrepôr a definições injustas. Por mais que governos decidam esculhambar movimentos culturais, artistas em geral, a arte continua a tocar as pessoas e transformar vidas.

O poeta dizia que os versos libertam as coisas. Que quando percebemos a
poesia de uma pedra, libertamos a pedra da sua “pedridade”. Salvamos
tudo com a beleza. Página 50

Afonso Cruz conseguiu de forma bem humorada relembrar a importância dos artistas na nossa vida. Ler esse livro durante a pandemia me fez pensar em como a arte consegue acalentar em momentos difíceis. Como seria a sua vida sem música? Sem filmes? Sem teatro? Sem livros? É de arrepiar, né?

Para você não ficar no escuro é melhor não abandonar poetas no parque. Interprete esse conselho de muitas formas. O parque pode ser opiniões que reduzem o valor da arte e do que ela pode desenvolver. Pode ser também a insensibilidade com o artista. Ele é humano. Como você e eu. E precisa ser apreciado, não só consumido. Apreciar é sinônimo de admirar.

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o vitorinu

Jornalista, apaixonado por livros e desbravador de sebos do Rio de Janeiro.