Anne with an e: “Você reserva um espaço para imaginação”?
Anne-Shirley desembarca na estação de Avonlea, na Ilha de Príncipe Eduardo, Canadá, segurando apenas uma bolsa escangalhada. Não tem muita coisa lá dentro, mas sua cabeça está cheia de histórias sobre seus pais adotivos. Ela é pálida, muito magra, ruiva e sardas por todo o rosto. Anne sabe que é uma figura estranha naquele lugar. Talvez seja porque ficou parada ali. Uma presença estática em um cenário de encontros e despedidas.
Só que ninguém a encontra e muito menos se despede. Sua vida é assim. Uma infância infeliz com histórias inacabadas que são transformadas em contos de fadas durante suas incursões em lares abusivos e cantos escuros do orfanato onde cresceu. Agora, sentada em um banco da estação, a garota não para de imaginar cenários fantásticos e acolhedores. Isso é inocência infantil ou simplesmente resiliência? No final, se permitir a cultivar um espaço para imaginação pode ser sinônimo de sobrevivência.
Cheguei a essa conclusão enquanto assistia ‘Anne with an e’, série da Netflix com última temporada lançada no início de 2020 e, infelizmente, cancelada após um desacordo entre a plataforma de streaming e um canal canadense que dividia a produção dela. Poderia pedir para você pegar uma tocha e marchar junto comigo até esse tal canal canadense ou à sede da Netflix na Califórnia para cobrar explicações. Acho que Anne aprovaria tal ato. Mas o texto não é sobre isso.
Quero falar sobre como as três temporadas da série abordaram temas sérios, como assédio, lgbtfobia, machismo, acesso a educação, sob os olhos curiosos de Anne. Tudo isso enquanto a personagem, baseada em uma série de livros de L. M Montgomery, cresce criando histórias e sonhando em conquistar sua própria independência. Quer ser mais do que uma história triste. Quer superar o abandono.
No começo da série, Anne solta a seguinte frase: “Serei heroína da minha própria história.”. Um senso de otimismo incomum no mundo real. Acredito que todas as pessoas precisam lidar com adversidades ao longo a vida. Isso é intenso porque ninguém pede para vir ao mundo. Simplesmente somos lançados em rumos incertos. Porém, sem querer parecer um coach, preciso dizer que a vida fervilha pelas frestas das nossas dores.
Depois de ser muito mal tratada, Anne tagarela sem parar sobre como árvores ainda têm muito a dizer para ela e sobre ela. O contato com o mundo, com total ciência que em parte ele é feio e cruel, pode ser benéfico para mente. Em uma conversa com Cole, seu amigo perseguido pela homofobia, Anne diz: ‘Não é o que o mundo reserva pra você, mas o que você traz para o mundo.’
Isso conversa tanto sobre as possibilidades que podem ser exploradas quanto como nos posicionamos diante delas. É sobre o que você pode aprender com seus erros e maldades dos outros. Por isso que Anne ainda se mantêm firme depois de tanta agressão feita pelas crianças do orfanato, vizinhos dos seus pais adotivos, colegas de classe e outros adultos da cidade.
Não posso esquecer do papel dos livros também. É preciso se alimentar de histórias para enriquecer a imaginação. Jerry, ajudante da fazenda onde Anne mora, não sabe ler. Ela começa a ensiná-lo e durante as aulas se lembra das vezes que a literatura a salvou de castigos e de aceitar maldades de cabeça baixa. Jerry resiste a ideia de ler. Anne rebate: “É claro que você precisa saber ler. Ler é tudo. Todo livro contém um mundo inteiro”.
Essa citação parece ser esquecida atualmente. Ainda mais quando os livros podem ficar mais caros e mais difíceis de ser consumidos no Brasil. A proposta de Reforma Tributária apresentada pelo ministro da Economia Paulo Guedes quer o retorno da contribuição tributária de 12% em cima do livros. O crítico literário Antonio Candido defende em seu texto ‘Direitos Humanos e Literatura’ que o acesso a universos de ficção devem ser considerados peças fundamentais para a humanização e bem estar das pessoas.
Para ele, “a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza”
Anne também tem seus momentos de insegurança. Não tem como sempre manter a imaginação fértil e inocente. Crescemos, portanto, nos tornamos mais céticos com a configuração do mundo. Existe a certeza de que a realidade não se movimenta mais com a facilidade de uma brincadeira de criança. Quando cresce Anne percebe que a imaginação não é o único remédio para afastar dores. Ela quer saber mais sobre sua origem, então volta ao orfanato que a acolheu e machucou.
Ela se sente tola por ter perdido tanto tempo criando histórias em vez de encarar sua verdade. Ela foi abandonada, esquecida e desamparada. A dor de uma criança sem lar e sem afeto a transformou em uma pessoa curiosa e inventiva, mas também carente de afeto e aprovação. A vontade de encarar a possibilidade de ter sido esquecida de propósito chegou na maturidade. Acompanhada de Cole, um dos seus melhores amigos, ela desaba depois de não conseguir respostas sobre seus pais.
Ele a relembra de uma coisa: “Você usou sua imaginação para escapar deste lugar. Sua realidade é efervescente. É linda. E fez você ser quem é.”
Essa habilidade de pintar novos horizontes transforma Anne em uma das personagens mais admiráveis da ficção. Buscar outros rumos para si mesmo não é impossível, mas difícil de conseguir quando reclamamos mais do céu nublado do que admirar o céu azul. Quando nos irritamos com o calor, mas também não reivindicamos a presença da natureza nos centros urbanos. Quando nos olhamos no espelho sem admirar a potência que nos mantêm de pé. Imagine quanto conseguiríamos se a gente reservasse um espaço para imaginação?
Seríamos aquela pessoa que ainda espera um grande encontro mesmo depois da estação de trem ter ficado vazia e solitária.
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Utilizei frases selecionadas por esse perfil do twitter: @Frasesdeannew. Lá você encontra outras citações maravilhosas da série.
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